A história do rapaz que corria, para poder correr.
Toda a gente à sua volta lhe parecia satisfeita, e feliz, de uma felicidade que ele nunca antes vira na cara das pessoas. É claro que tinha desconfiado, e por isso começou a correr, a fugir do palácio, para se certificar de que as coisas corriam tão bem, tão bem quanto lhe diziam. Quando aprendeu a bem cavalgar, afastou-se até 50 quilómetros, e tudo parecia acontecer efectivamente conforme lhe relatavam. As pessoas viviam melhor que nunca, havia abundância, e todo o reino parecia prosperar.
Depois da revolução, soubera que os nobres tinham sido presos, e arriscaram um final funesto, se não fosse a intervenção do seu pai, que era agora um dos ministros do reino. Evitava ter a família por perto, apenas tolerava o suficiente para os deixar satisfeitos. Tentaram casá-lo cedo, mas também aí deixou correr a situação o suficiente para não se envolver muito com ninguém. Estava naquele ponto em que vislumbrava o futuro, e o que parecia permitir a felicidade de quem o rodeava, era também aquilo que o iria prender definitivamente a uma vida que não lhe agradava.
Por isso, naqueles tempos, seria ele a pessoa mais apreciada e menos feliz num reino de pessoas felizes.
- Quando a procissão real desfilava na rua, urrei "vai nú" para o meu pai, apontando para o imperador. O meu pai repetiu a frase, duas vezes, e as pessoas continuaram a repetir "vai nú"... como se ninguém tivesse visto antes! Como é isso possível? Só se estivessem todos enfeitiçados!
E ao leitor, poderá interessar saber se o rapaz engravidou a consorte, e viveram felizes para sempre, mas a mim interessa fazer notar que o leitor nunca deixou a criança crescer. Nunca quiseram continuar as histórias começadas na vossa cabeça, e esperaram sempre que alguém lhes desse continuação.
- Ah!, pois e tal... não se está mesmo a ver que a história só interessa como alegoria?
Não, não está! Quando a história é passada como uma meia-história, é passada como meia-verdade.
O mais natural numa situação dessas seria o pai dar-lhe um safanão e dizer "está calado".
Hans Christian Anderson disse que o rei prosseguiu como se nada estivesse a acontecer, de certa forma tal como o próprio Anderson fez como se nada tivesse acontecido, quando pegou nesta história do autor espanhol Don Juan Manuel, do Séc. XIII, e lhe tirou o desfecho original, em que a criança que tal coisa haveria de notar, seria um filho bastardo do imperador. Mas o que é que isso interessa, se esse próprio autor já tivesse ido buscar fábulas do tempo do escravo grego Esopo, tal como o fez ipsis verbis La Fontaine? - Não interessa nada!
Interessa que o rapaz, fosse ou não filho do imperador, ou rei, ficando famoso por ter denunciado a situação surreal, permitiria ao povo despir a sua cegueira social, e olhar sem panos para um imperador que se exibia orgulhosamente nú. Ora, a revelação que quiseram atribuir à criança, não era nenhuma propriedade sua, era um defeito congénito dos outros.
Como pode depois a criança se sentir bem, por nascer com alguma visão, se está num mundo de cegos?
Snow Patrol - Run (2005)
A situação "de quem quer acertar antes de tempo" é uma pena dupla ou tripla.
Primeiro, porque quando faz o prognóstico, está a remar contra a maré, normalmente isolado.
Segundo, porque quando acerta, os outros raramente aceitam a própria cegueira, e olham com maus olhos para alguém que, com razão, os acusou de ser cegos, antes do tempo. Nesse aspecto a cegueira nunca é uma visão, é apenas uma nova cegueira.
Terceiro, porque não é a sua visão que retira a cegueira dos outros, e é com isso que terá que viver, mesmo se acidentalmente todos os cegos o viessem a louvar.
Finalmente, como é claro, este texto não fala do leitor que está a ler, mas sim de todos os outros...
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