quarta-feira, 15 de maio de 2013

De Natura Deorum (3)

A antiga mitologia criacionista tem um aspecto maternal que aparenta ir buscar as suas raízes longe, na noite dos tempos. Há conclusões simples que não devem ter escapado aos nossos antepassados, mas que de forma propositada, ou despropositada, foram ficando do foco primeiro da atenção.

Seria óbvio que o primeiro ser pensante teria saído de um útero não pensante...
Esta era uma visão materialista, mas no sentido de uma matéria, que é mater, ou seja, mãe!
Teria o modo, a forma, mas não a razão, à matéria faltaria a alma, Alma Mater.

Alma Mater (de Edvard Munch)

Há assim um culto antigo, que se confunde com o da "mãe natureza", de onde emerge a consciência humana.  Generaliza o conceito de gestação materna de cada indivíduo, a uma génese da própria espécie pensante, enquanto produto de uma Mãe Terra. 
Cada homem necessita tanto do útero materno, como a espécie humana necessitou do útero terrestre para se desenvolver. 
Na própria gestação do feto podemos ver reproduzidas fases de desenvolvimento que nos aproximam de outros animais. E isto nada tem de darwinismo... não é uma evolução despropositada, é a reprodução sequencial de um caminho de auto-consciência. A Terra não ganhou consciência da sua existência com as bactérias, nem com as plantas, nem com os dinossauros ou mastodontes, conseguiu essa consciência através de um caminho improvável que levou aos seus filhos humanos.
Porém, só quando temos a cabeça na Lua podemos dizer que a Terra não manifestou com isso a sua própria inteligência e consciência... ou será que somos tão antropocêntricos que nem nos vemos como parte integrante de toda a mater, a matéria terrena?
Bom, é verdade que os filhos, primeiro abandonando o útero materno, depois abandonando as saias da mãe, vêem-se como seres distintos da progenitora... mas no caso da espécie humana ainda mal se poderá dizer que abandonou o útero terreno.

No mesmo sentido, se todas as coisas tem por constituintes partes de uma qualquer matéria, estão inevitavelmente dentro desse enorme conjunto, dessa magna mater universal. Aí a conclusão é ainda mais radical - estamos dentro do útero de um universo mãe, que nos gerou. Creio ter sido nesse sentido global que se desenvolveu o culto da Deusa-Mãe, e foneticamente não podemos ignorar que o som "mãe" é demasiado próximo de "mãi" ou "mãia", levando ao difundido culto de Maia, enquanto divindade que ocupou esse lugar numa mitologia popular cuja tradição se perdeu na noite dos tempos (ver texto Mayday), ainda que normalmente se associe a Cibele enquanto Magna Mater.


Curiosamente, Camões no Canto 2 (56) dos Lusíadas escreve:
"manda o consagrado filho de Maia à Terra"
o que remeteria para o hermético Hermes, pelo que nalgumas versões foi corrigido para
"manda o consagrado filho de Maria à Terra"
notando que nalguma tradição gnóstica a identificação hermética de Cristo parece ter sido considerada.


De qualquer forma, o catolicismo recuperou parte dessa génese de Magna Mater no culto Mariano - é  afinal nesse ventre materno que se formará o Deus Homem, pela inevitabilidade da sua matéria humana - será a Mater que fornece a matéria da gestação.
A tradição antiga invocaria também uma Mater primordial (Gaia) de onde teriam emergido os próprios deuses criadores (Urano, Cronos, Zeus).

Se os epicurianos aceitavam a existência de deuses criadores, desligavam-nos das suas criações, colocando-os numa esfera à parte, inacessível. Isso seria tipicamente a argumentação vazia, refugiando-se numa transcendência que escaparia ao entendimento humano... ou seja, beberia na mesma fonte onde os dogmas escolásticos vieram a assentar - a inacessibilidade, que teria como resultado a negação da racionalidade, levando à panóplia niilista. A retórica levava a racionalidade a bater no obscurantismo, porque não havendo respostas para a "criação dos criadores", tudo seria afinal equivalente à ausência de resposta.

Por outro lado, a figura cristã de um Deus Homem capaz de compreender e aceitar o seu destino material, numa manifestação de potência interna perante o sofrimento infligido pela potência externa, é tipicamente uma consagração da filosofia Estóica. Não é uma simples resignação ao sacrifício, é uma aceitação de sacrifícios como meio de alcançar a sua completa compreensão, não já na matéria humana, mas no seio superior da Alma Mater.

Não há nada igual... Há apenas igualdades parciais, conceptuais, mas têm que primeiro se estabelecer pela diferença para que as possamos agrupar depois numa qualquer igualdade.
Esse é o paradigma antigo da Mater cujos filhos são diferentes, mas que os quererá agrupar numa mesma igualdade de origem... para isso precisa de um entendimento, de uma Alma, gerada no seu seio que lhe permita essa compreensão da igualdade na diferença.

São demasiadas vezes confundidos conceitos humanos com noções puramente lógicas e abstractas, mas uns têm tradução nos outros, basta compreender como.
Podemos falar numa Deusa-Mãe ao mesmo tempo que vemos isso apenas como uma mera noção abstracta que engloba todas as entidades idealizadas, puramente matemáticas, onde o tempo, o espaço, e tudo o resto são apenas qualidades particulares, distintivas, são a matéria Mater.
O estabelecimento de relações entre as diversas noções é um nível seguinte, que leva ao conceito de inteligibilidade. Não há nenhuma "vontade materna" de equidade, mas ela pode ser expressa assim, porque ilustra o absurdo duma evolução universal para um permanente desequilíbrio. Por isso, as alegorias podem bem viver em conjunto com as afirmações lógicas, desde que lhes encontremos um sentido.

A inteligibilidade do universo está sempre um passo atrás da sua contemplação, mas não tem qualquer limite, tirando os limites lógicos. As limitações lógicas são essência da própria inteligibilidade, nem sequer estamos presos a elas... simplesmente sabemos que a sua recusa leva ao vazio, ou ao caos. Ao vazio, quando aceitamos contradições, ao caos quando começamos a falar em meias verdades.
A lógica é bivalente porque a existência é una - não nos dividimos em dois seres - um que lê esta frase, e outro que não lê, por isso apenas temos uma verdade.
A dúvida pode levar a aspectos trivalentes, por incapacidade ou cisma pessoal. A incapacidade é natural, mas o cisma é diferente, é a recusa de resolubilidade da dúvida. Ou é objectiva, ou é mera obstinação, uma recusa da possibilidade de compreensão.
Acresce que, por simples constatação lógica, a inteligibilidade do universo está necessariamente contida nele, pelo que não deve ser vista como inatingível... há limitações, em particular resultantes da nossa Mater, da matéria humana onde nascemos, mas o que interessa é a predisposição.

Temos uma predisposição favorável à verdade, ou optamos por ilusões que nos remetem para falsidades?
Não faz sentido pensar que uma pedra está infeliz com a sua natureza, nem tampouco uma planta, porque não lhe reconhecemos raciocínio ou desejos. Quanto aos animais, podemos facilmente pensar que se lhes oferecermos alimentação e a companhia desejada, isso satisfará os seus "desejos".
Continuarão a pedir mais indefinidamente? Não cremos.

Porém com os humanos é diferente... pela sua natureza infinita os seus desejos nunca parecem possíveis de satisfazer. Os humanos não estão bem consigo próprios, porque tendem sempre a cair num desajuste entre o que é e o que queriam que fosse, e repetem isso sucessivamente.
A medida de infelicidade é o desajuste entre o que se quer e o que se tem. Quem não sabe o que quer, por muito que tenha, está insatisfeito e dificilmente será feliz... e obviamente há quem consiga ser razoavelmente feliz, mesmo com pouco.

Ao contrário do que é habitual pensar, a felicidade não é um problema individual, é um problema comunitário. A questão é que basta sentirmos que há alguém infeliz para sabermos que a insatisfação pessoal daquele indivíduo o pode levar a acções que nos ameacem. Nem é só isso, a simples projecção na situação de infelicidade alheia deveria provocar também um desconforto. Por isso, ninguém pode ser completamente feliz tendo consciência da infelicidade alheia na comunidade.
Quando a comunidade é global, o problema torna-se global.
Quando as orientações de felicidade da comunidade levam a desejos de protagonismo individual, quando há desequilíbrios evidentes de posses, então a comunidade está a abrir sucessivas insatisfações nos seus elementos, agravando os problemas de infelicidade em todos.
Ao contrário, uma comunidade progride muito mais se não exacerbar o protagonismo individual, porque isso deixa de constituir um desejo de afirmação do próprio perante os outros, que é o que leva a desequilíbrios insanáveis. O progresso científico faz-se pela curiosidade natural, enquanto que o desejo de sucesso apenas limita a colaboração. Por outro lado, os desequilíbrios nas posses são tolerados pelas comunidades quando há algum racional de mérito, mas qualquer manifestação exagerada ou claramente injusta leva a grandes insatisfações. Por isso, seria necessária não apenas uma mudança da lógica comunitária, mas também uma necessidade de acompanhamento introspectivo de muita gente... porque, por falta de introspecção, muita  gente nem sabe que é infeliz - procura desculpas para a sua insatisfação nos outros, ou na comunidade. E isso, é transversal... tanto ocorre na recriminação de classes baixas a altas, como vice-versa.

A questão latente é que, mesmo eliminando as circunstâncias sociais, existem desequilíbrios naturais... e se os problemas físicos, ou os medos funestos, podem ser combatidos por medicinas, filosofias ou religiões apaziguadoras, há em última análise problemas tão simples que resumem a amores não correspondidos... e esses acabam por ser fronteiras últimas de entendimento e inquietações pessoais.


Termino, com uma pequena nota sobre a equidade.
A equidade é engraçada quando a vemos espelhada num culto dos seus promotores... o destaque que se deu a alguns promotores da equidade (e não falo apenas de Marx, Lenine, Mao, etc...) foi um contra-senso com a necessária discrição que favorecia a ideia subjacente. Quando se idolatriza alguém está-se contra a própria ideia de favorecer a equidade. Por isso, por consistência, alguns dos maiores promotores da equidade devem ter sido esquecidos por opção própria.
No entanto, mesmo assim, há quem sempre leve a questão da equidade ao limite, ponderando sobre a sua possibilidade teórica. Ou seja, será ou não possível que uma Mater tenha ao mesmo tempo filhos diferentes com perspectivas de igual protagonismo?... Repare-se que isso entronca logo com a necessidade de haver um primeiro... um varão. Como equalizar o que é afinal diferente?
O número é uma das maiores capacidades equalitárias racionais - tudo o que concebemos pode ser contado, associando-lhe um número, sem distinção do que se trata... mas mesmo fazendo isso estamos a colocar uma ordem, distinguindo os números. Um será o primeiro, outro o segundo, etc... em qualquer ordem a hierarquização parece inevitável, pelas inevitáveis diferenças. Não diferenciando nada, reduzimos tudo ao mesmo, a um.
Ora, só o tempo permite a mudança da ordem. O que hoje foi primeiro, segundo, etc... poderá ter outra ordenação em nova contagem. Por isso, pela simples repetição, retirando a referência de início ou de fim, a mudança temporal permite todas as possibilidades e uma igualdade potencial...
Isto é simplesmente importante porque mostra que a hierarquização de eventos trazida pelo tempo não é definitiva, e portanto não condena ninguém a um papel secundário...


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