domingo, 14 de dezembro de 2014

Nebulosidades auditivas (23)

As pessoas que procuram ter uma visão global do contexto têm sempre razões de preocupação.
No tempo da Guerra Fria isso era claramente simbolizado pela "bomba", ou seja, o arsenal de bombas nucleares ao dispor no clique de um botão nas duas potências mundiais.

De forma algo simplista, todos os problemas pareciam reduzir-se à dualidade entre Leste e Oeste, e era muito frequente pensar-se que faltava apenas um entendimento ao nível dessas potências para resolver os problemas mundiais. Assim, em 1989, com a queda do Muro de Berlim, argumentava-se um "fim da História", segundo o publicitado Francis Fukuyama.

A questão do conflito nuclear era adquirida desde a infância, e filmes como Day After  (1983) ajudavam a manter o medo sobre os efeitos de um inverno nuclear.
Um episódio pouco conhecido no Ocidente é revelador do acentuar do problema com a sucessão de Leonid Brezhnev. Andropov tinha sido particularmente duro na revolta húngara, e com o cowboy Ronald Reagan do outro lado, não se esperavam boas notícias.
No espírito da época, uma criança, Samantha Smith, escreve a seguinte carta a Andropov em 1982:
Dear Mr. Andropov,
My name is Samantha Smith. I am ten years old. Congratulations on your new job. I have been worrying about Russia and the United States getting into a nuclear war. Are you going to vote to have a war or not? If you aren't please tell me how you are going to help to not have a war. This question you do not have to answer, but I would like to know why you want to conquer the world or at least our country. God made the world for us to live together in peace and not to fight.
Sincerely,
Samantha Smith
Alinhando pela oportunidade publicitária, Andropov responde, e convida Samantha Smith a visitar a URSS, o que ocorre com grande sucesso para a publicidade soviética em 1983.
Depois, é sabido que a saúde de Andropov pouco durou, Chernenko idem (tomara posse já internado), e o poder soviético só estabilizou com a confirmação de Gorbashev, em 1985, claramente empenhado em mudar o sistema comunista e na aproximação ao ocidente.
Como os aviões têm conhecida tendência a despenhar-se, a incómoda criança americana que visitara os russos irá perecer também em 1985 - Samantha tinha 13 anos.

As manifestações e medo pela ameaça mundial soviética tiveram as suas épocas. O problema começara com o rápido desenvolvimento russo. Em 1949 detonavam a primeira bomba nuclear, e depois, durante a liderança de Nikita Kruschev, suplantariam os americanos em todo o projecto espacial.
O sucesso espacial russo está intimamente ligado ao nome de Nikita... começou e terminou consigo. A sua deposição e danação de memória, a partir de 1965, apresentou o declínio soviético com Brezhnev. A propalada vitória americana na simulada "Guerra das Estrelas" de Reagan, é mais um dos mitos ocidentais... Andropov, logo em 1983, teria anunciado o fim do programa soviético de armas espaciais!

Talvez tenha havido um curto tempo em que dois líderes quiseram ter efectivo poder sobre as potências que comandavam - foi o tempo de Kennedy e Kruschev... foi o tempo da crise dos mísseis em Cuba. Kennedy desapareceu em 1963 e Kruschev foi afastado em 1965. Os poderes de bastidores prepararam uma ascensão diferente, menos incómoda às suas manipulações. O "reinado" de Brezhnev mergulhou a Rússia numa progressiva corrupção passiva, e só a sua sucessão preocupava o lado ocidental. Acabadas as dilacerantes guerras da Coreia e do Vietname, a transição dos anos 70 para os anos 80, trazia esse espectro de uma Rússia ameaçadora, com Andropov.

Parece então que o efeito da dissuasão nuclear ganhou outra seriedade. Nas décadas anteriores havia a possibilidade de conflito, mas não era encarado como um conflito de proporções catastróficas mundiais. A acumulação de armamento nuclear tornara entretanto a ameaça como apocalíptica.

"The Wall", foi o album dos Pink Floyd lançado em Novembro de 1979, e serviu de símbolo para a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989. Foram 10 anos certinhos que marcaram a década.
Mas o período mais quente terá ocorrido até 1983, até ao momento em que Andropov foi afastado.
Entre 1980 e 1983 o mundo precipitava-se nas sombras, antevendo um 1984 Orwelliano...

Exemplo desse espectro catastrofista é o tema "Let's all make a bomb" dos Heaven 17.

a que se deve adicionar o tema "We don't need no fascist groove thang"


Reagan's president elect
Fascist god in motion
Generals tell him what to do
Stop your good time dancing
Train their guns on me and you
Fascist thang advancing

Os anos 80 iriam contar com um alinhamento de Thatcher e Reagan na política internacional, permitindo libertar as correntes legislativas que prendiam os monstros financeiros.
Os perigos dos monstros financeiros eram bem conhecidos - tinham estado na origem de duas guerras mundiais e a sua libertação foi uma jogada arriscada. Era essa a paranóia anunciada, contava-se com uma não resposta do outro lado, lançando o medo generalizado.
Contava-se que a libertação de regulação ao poder económico permitisse criar monstros privados que se encarregariam da destruição dos estados. O objectivo previsto seria a aniquilação económica dos estados soviéticos, mas uma vez o monstro libertado sem regulação, nenhum poder estatal estaria a salvo desse poder libertado.

Criou-se assim rapidamente o tempo dos yuppies, numa conversão de hippies em agentes financeiros pouco escrupulosos. A única ligação terá sido a sua dependência a drogas, as mortalhas de erva dariam lugar às linhas de coca. O mundo aceleraria a um ritmo sem paralelo, puxado pelo monstro da competição interminável. A música foi bem reflexo disso - os artistas apareciam e desapareciam a um ritmo de um consumo incessante. Ainda hoje servem os nossos ouvidos as novidades que no início dos anos 80 ficavam velhas ao fim de poucas semanas.

Se alguém pensou em prender o monstro capitalista no final da Guerra Fria, iria verificar que era tarde demais. O monstro capitalista que puxara o desenvolvimento industrial inglês e americano no Séc. XIX, estava de novo desregulado, pronto a consumir todos os poderes para se poder alimentar, libertando-se dos travões morais sobre a exploração do trabalho, até sucumbir na sua própria lógica insana.



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Nebulosidades auditivas (22)

Gorillaz - um projecto musical onde os protagonistas seriam apenas bonecos animados, deixaram uma sucessão de vídeos notável, onde contaram até com a participação de Bruce Willis. A influência hip hop dos De La Soul começara a tomar efeito, e ganhar múltiplas variantes.




Broken - Gorillaz (Plastic Beach)

Distant stars come in black or red
I've seen their worlds inside my head

They connect  with the fall of man
They breathe you in, and dive as deep as they can

There's nothing you can do for them
They are the force between, when the sunlight is arising

There's nothing you can say to him
He is an outer heart, and the space has been broken now
It's broken, our love, is broken

Is it far away in the glitter freeze or in our eyes
Every time they meet
It's by the light of the plasma screens
We keep switched on all through the night while we sleep

There's nothing you can do for them
They are the force between, when the sunlight is arising

There's nothing you can say to her
I am without a heart, and the space has been broken now
It's broken, our love, is broken
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A tomada de consciência nunca foi imediata.
A inteligência apareceu antes da sua tomada de consciência.
Não podia ser doutra forma, afinal só podemos conhecer o que já existe.

Assim, é completamente diferente pensar em seres inteligentes e em seres que tenham consciência da sua inteligência. A inteligência de uns pode superar a dos outros, mas há uma imensa diferença... uns são máquinas, os outros não.
Os processos mecânicos podem desenvolver-se autonomamente a ponto de exibirem prodígios de inteligência literal. Vemos exemplos de como essas soluções foram encontradas biologicamente, como se houvesse ali um desenho inteligente. E esse desenho inteligente não pode ser negado, porque está ali para ser contemplado. A grande diferença é que essa tomada de consciência de inteligência não é inerente ao processo observado, é inerente ao observador. 

Na encruzilhada temporal haveria o caminho puramente genético, onde a inteligência apareceria codificada numa sequência de DNA, mostrando a capacidade de inteligência da ordem, mas seria uma inteligência que nunca seria vista... porque ao finito falta a capacidade de reconhecer o infinito, ao limitado faltaria a capacidade de ver a sua limitação. Para alguém reconhecer as suas limitações tem que ir acima delas, para as poder contemplar. Só os limitados ignoram as limitações...   
Nesse caminho genético, nada impediria a programação de capacidades computacionais imensas, em cérebros programados de forma similar.
Esse seria o caminho de grandes gorilas divinos, capazes de proezas notáveis, mas inconscientes da sua capacidade. Capazes do bem e do mal, sem distinguir a diferença entre ambos. 
Porque a diferença entre o mal e bem é uma diferença de percepção ecológica, é uma noção ausente da ordem local, é uma noção imposta pelo caos global.

Esta ecologia não tem apenas raiz etimológica no oikos grego, que remete à casa ou família global, é também uma "ciência do eco". Este "eco" é o retorno que teremos a cada som que emitimos, a cada acção que produzirmos.
A cegueira da ordem local foi o pensar que haveria uma solução local que se imporia globalmente, com um centro bem identificado. Cresceria anulando o restante, cega pelo seu umbigo gerador. 
Veria o que queria ver... ver-se-ia a si, esquecendo a casa onde crescia.
Começava por ser a bactéria reprodutora, capaz de inundar em pouco tempo o planeta com uma reprodução exponencial, até que seria confrontada com o eco da sua acção - a falta de alimento para acompanhar tal crescimento. A sua acção local era um sucesso, o problema era a falta de visão do eco global da multiplicação dessas acções. 

A inteligência humana não terá surgido até que os homens foram forçados a reconhecer a influência global das suas acções. Os hominídeos podem até ter exibido sinais de inteligência mecânica, quase sem limites, com criatividade para fazer prevalecer a sua visão local... só que isso não traz nenhuma consciência do que faziam. 
A maior inteligência de gorilas, só favorecia a competição entre gorilas, não permitia ao gorila ver que ao anular os diferentes, estaria só a deixar iguais, mas não estaria a acabar com a competição entre iguais. Por muito iguais que fossem, a competição estimularia sempre qualquer diferença, até que no limite, o gorila estaria a ser a levado a uma competição consigo mesmo.
Por isso, a ecologia em confronto é sempre o eco das acções em si próprio. 
O homem só se tornou homem quando aprendeu a ver nos outros semelhantes, quando passou a sofrer com a dor dos outros, projectando-a em si. Essa capacidade de empatia com o semelhante, que ao longo da história se tem procurado retirar, em nome duma competição incessante, é a diferença fundamental entre o homem e a besta. É a diferença fundamental entre uma consciência para um equilíbrio num contexto global, e uma inconsciência para um sucesso local aprazado.

Da natureza vem essa ordem programada, finita, cega ao eco de si própria. Daquilo a que se pretende chamar caos, chamar coincidência, negligenciar, por falta de melhor entendimento, surge o inexplicável, a semente das ideias do único futuro para este presente. 
Por muito que se veja o império duma ordem construída, só o olho cego não quer ver que essa ordem só pode ser vista numa dimensão muito superior, onde os impérios de cabeças de formigas são esmagados com um pé, um pé no futuro.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O galo de Sócrates

Num texto sobre a primeira domesticação animal, o galo de bankiva aparecia como candidato originário de paragens indonésias ou melanésias. A popularidade europeia dos galináceos terá surgido como importação oriental, constando que não seria propriamente comum e acessível entre os gregos.

Basta notar que um presente amoroso de Zeus a Ganimedes terá sido um cocó...


Por esta indicação, podemos suspeitar que a oferta do cocó fosse tão exótica quando a oferta de um pássaro raro, como seriam provavelmente papagaios, araras, tucanos, etc. 
Ganimedes rolando um arco e segurando 
o cocó oferecido por Zeus (wikipedia)

A última frase reportada a Sócrates foi dirigida ao amigo Críton:
Κρίτων, τω Ασκληπιώ οφείλομεν αλεκτρυόνα, απόδοτε και μη αμελήσετε.  
Críton, a Asclépio devo um galo, cuida de não o esquecer.

Esta "última dívida de Sócrates" já recebeu diversas interpretações sobre o seu significado, parecendo suscitar alguma contradição entre a sua condenação herética, e a menção ao sacrifício de um animal ao panteão divino. Havendo referências de que o filósofo pareceria ver na morte uma cura para a tribulação da vida, a oferenda a Asclépio (ou Esculápio, no equivalente romano), podia também significar que agradecia esse efeito terminal, quando a cicuta já lhe tomava o corpo.

O nome grego aqui usado para galo αλεκτρυόνα nome não muito comum (há ainda κόκκορα, cocó), sendo usado ainda assim como prefixo de um tiranossauro - o Alectrossauro, cuja enorme perna exibia o típico polegar galináceo, e de dimensões não muito diferentes dos nossos Lourinhã-sauros.

Faço apenas esta referência porque o prefixo "Alectro", do galo (ou cocó), é demasiado próximo de "Electro" para não ser notada uma semelhança entre a ave que os romanos associavam aos gauleses (gallus), e o nome da liga metálica entre ouro e prata, ou o nome grego para um âmbar que inundava as praias germânicas (elektron).

Certamente que Críton terá feito por pagar a oferenda a Asclépio, que não era propriamente uma divindade do panteão clássico. Sendo considerado o "deus da medicina", a quem era prestado o juramento de Hipócrates, era um semi-deus entendido como filho do deus Apolo e de uma humana, Coronis.

A educação de Asclépio fora entregue ao famoso centauro Quíron, a quem se dedica o presente signo e constelação de Sagitário. O centauro teve como pupilo mais famoso o aqueu Aquiles, a quem instruiria no manejo da flecha (sagitta)

Aquiles e o centauro Quíron. 

A mitologia sagitariana coloca Quíron no fim do tormento infligido a Prometeu, abdicando da sua imortalidade para terminar com a dor com que o trespassara uma flecha envenenada de Hércules, aquando da sua aventura na captura do Javali de Erimanto (curiosamente, também Asclépio será colocado na época da captura de outro javali mítico, o Javali da Caledónia).

É natural que esta simbiose equestre dos centauros se pudesse reportar a tribos que praticamente cresciam sobre o dorso equestre nas grandes planícies tartáricas (que se iriam estender do Don ao Lena). Afinal essa caracterização rude dos centauros poderia ser aplicável aos Citas, tal como foi depois aplicável aos Hunos.

A Asclépio ficou associado o bastão com uma serpente enrolada, símbolo do seu conhecimento de artes médicas herdado de Quíron.

Ao contrário do caduceu de Hermes, caracterizado depois por duas serpentes enroladas em confronto, Asclépio tomara apenas uma das serpentes no seu bastão.

Os dois símbolos (o caduceu de Hermes e o bastão de Asclépio) foram e são usados para empresas, associações e instituições médicas e farmacológicas (ver este link, por exemplo).

Aqui é razoavelmente fácil considerar uma interpretação da escolha médica de Asclépio tomar apenas um lado serpentino.

Com efeito, a produção de drogas ou venenos enrolava-se em dois aspectos... um positivo para a cura de maleitas, mas outro negativo pela aplicação venenosa com efeito letal nas vítimas.
O centauro Quíron seria vítima do efeito da flecha envenenada de Hércules, contra a qual nem o tutor de Asclépio teria conseguido escapar. Assim, se é natural as associações médicas mostrarem o lado serpentino benéfico, já do ponto de vista farmacêutico a produção da substância, da droga, dissocia-se do fim para a qual é aplicada, e tanto pode enrolar para o lado venenoso como curativo, fazendo mais sentido nesse caso usar como símbolo o caduceu hermético.

O confronto da utilização benigna ou maligna de uma mesma substância, de uma mesma invenção, tem sido o profundo dilema que foi enredado num secretismo hermético, preferindo a sua oclusão à sua manifestação. Se o original caduceu pode ser hoje ligado facilmente à estrutura helicoidal do DNA, esse é apenas um aspecto interpretativo condicionado por um certo olhar. O ponto primordial é ainda que o mesmo conhecimento sobre o DNA pode levar a utilitarismo diverso. De um lado as aplicações médicas no sentido benigno, do outro lado as aplicações militares no sentido maligno.
De pouco vale pensar que umas compensam ou justificam as outras... é inútil e perigoso considerar que um explosivo será apenas usado com fim benigno. A sua utilidade para uso maligno pode ser igualmente apelativa, e não pode ser evitada. Esse é o perigo inato do conhecimento, presente desde o início, desde o instante em que a serpente o revelou - a ponta da flecha serviria a caça, mas o alvo estava colocado na sanidade ou no caos da mente humana.

sábado, 8 de novembro de 2014

Nebulosidades auditivas (21)

Há uns meses, houve uma conversa sobre a pseudo-teoria de "humanos reptilianos", que David Icke costumava mencionar, e a que o Paulo Cruz dava atenção, ligado ao assunto dos crânios de Paracas.
Nessa altura disse:
Lembro-me de uma série antiga, dos anos 80, que tinha exactamente um enredo a esse agrado:
V - Visitors (TV series, 1983) 
talvez David Icke tenha ido buscar a ideia reptiliana a essa velha série... de qualquer forma, esse V fez-me logo lembrar outro V:
Eu ligaria o V mais ao facto de ter depois um outro filme que ficou igualmente popular:
V for Vendetta
banda desenhada exactamente da mesma altura (vejam-se lá as coincidências) e especialmente o filme que deu origem à mania das máscaras, e ao movimento "Anonymous".
Ver este vídeo do Nicky Romero, "Toulouse":
... já esteve na calha para uma "nebulosidade auditiva" no OdeMaia. 
[17 Julho 2014]
Assim, por estranho que fosse, num ápice, dos crânios deformados chegávamos a Toulouse.
Leio agora que a deformação intencional craniana era denominada "deformação de Toulouse"
 
Mapa com a deformação de Toulouse, e regiões onde era praticada ainda no Séc. XX (ver Dingwell, 1931)
 In the region of Toulouse (France), these cranial deformations persisted sporadically up until the early twentieth century  [wikipedia]

Coincidências, ou não, antecipei que o vídeo "Toulose" estava agendado aqui:

"Toulouse" de Nicky Romero, 

mas por razão do V de Vendetta... e não tanto pela deformação craniana de Toulouse.

Esta ligação que nos levou à região occitana de Toulouse é estranha, tão estranha quanto é o registo que foi das suas pinturas rupestres aos jogos florais, passando pelos antipapas de Avinhão.

Quanto ao V, V de um filme que tem inspirado movimento Anonymous, parece ser apenas mais um movimento do sistema, que passa por ser anti-sistema. Não é difícil entender que não serão os canais do sistema a questionar o sistema. Qualquer sistema minimamente inteligente disfarça uma oposição, para que nunca haja espaço para uma verdadeira oposição.
Porque, o problema é simples... The revolution will not be televised, brother.

domingo, 26 de outubro de 2014

Nebulosidades auditivas (20)


Troy - Sinéad O'Connor

I'll remember it
Every restless night
We were so young then
We thought that everything
We could possibly do was right
Then we moved
Stolen from our very eyes
And I wondered where you went to
Tell me when did the light die
You will rise
You'll return
The Phoenix from the flame
You will learn
You will rise
You'll return
Being what you are
There is no other Troy
For you to burn

(...)

But you should've left the light on
You should've left the light on
And the flames burned away
But you're still spitting fire
Make no difference what you say
You're still a liar
You're still a liar

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Nebulosidades auditivas (19)

Há uma história que me foi contada, há quase um ano, sem que se possa dizer que alguém ma contou... é mais correcto dizer que soube, ou vou sabendo dela. Quando abrimos a tradução para outras linguagens, há situações em que o ruído se ouve como música.

O lago universal era um aquário onde cada cada peixe parecia ser um aquário, igual ao aquário maior. E à medida que os peixes cresciam, em formas e feitios, de entre eles surgiu uma grande lontra. A grande lontra era mais parecida com o aquário, porque podia engolir em si os peixes.
Assim, a grande lontra passou a alimentar-se de peixes, e fartamente, porque peixes era coisa que não faltava. Até que se viu num reflexo de um, um que lhe escapou. 
Esse acontecimento foi uma epifania universal. Ficou-lhe a ideia de que não havia apenas peixes, ficou a ideia de que entre os peixes haveria outra lontra. Por momentos, a lontra hesitou em comer peixes, e os peixes cresceram. Cresceram até a ameaçar, pelo que ela voltou a comer indiscriminadamente. Mas apenas comia os que não fossem parecidos com o seu reflexo... de tal forma que ao fim de algum tempo só restavam os que eram parecidos consigo. 
De novo a grande lontra hesitou. Mas os peixes multiplicavam-se e sentiu-se novamente ameaçada. Voltou a comer, com o mesmo critério... e cada vez mais os peixes se pareciam consigo. 
Nova epifania - viu então uma solução contra o isolamento no devorismo, a ponto dos peixes que restavam serem agora pequenas cópias da lontra. Mas afinal, nunca eram iguais, só ela se alimentava deles. O medo que tinham de si, não permitia uma igualdade de comportamento. Bastaria diminuir de tamanho, pensou ela, ser também peixe. Porém, assolou-lhe a ideia de que, nesse caso, poderia surgir entre eles uma outra grande lontra. De predadora, passaria a presa. Optaria por deixar crescer aqueles onde se revisse, cada vez mais, mas manteria sempre um ascendente.
Ao fim de muito tempo, conseguiu quase o queria. Deixou as pequenas lontras crescerem, e também variados peixes, de que se alimentavam. Aparentemente já só matavam peixes, mas a grande lontra sabia que tinha proceder de forma diferente. Afastava-se para ver o comportamento das jovens lontras. Não poderia deixar crescer muito as que hostilizassem os outras lontras, porque crescendo iriam hostilizá-la também. Por outro lado, não se identificava com as lontras que eram simplesmente lontras... que não se apercebiam do perigo duma grande lontra, do seu perigo.
No fundo, a grande lontra procurava ainda uma grande lontra, o reflexo que vira escapar-se-lhe. Mas não tão grande quanto isso... porque o que mais temia a grande lontra era uma lontra maior.
Assim, há muito, muito tempo, a grande lontra acabou finalmente por encontrar a tal alma gémea entre as outras lontras. Mas a história ainda não acaba aqui...
A grande lontra apenas queria essa companhia perdida, uma grande lontra igual - mas que fosse menor... e não isso era que incomodava a pequena grande lontra. O que incomodava a pequena grande lontra era que a maior já não via utilidade nas outras lontras. Ela só queria uma companhia, uma companhia sem ameaças do crescimento doutras lontras, e já a tinha encontrado. Porém a pequena grande lontra soubera crescera com as companheiras, e não via em todas elas a mesma ameaça. Não estava disposta a abdicar do seu mundo para satisfazer o grande desejo da grande lontra, por muito que tivesse compreendido a sua situação. Foi assim que, quando a grande lontra dizimou as restantes, a pequena grande lontra desapareceu. De nada valeu a fúria da grande lontra. Tinha que recomeçar tudo de novo, apenas com os peixes... e com o medo de que pequena grande lontra reaparecesse maior, pronta a engoli-la.


Fool's Overture. Supertramp - Roger Hodgson (performed 2004). 

History recalls how great the fall can be
While everybody's sleeping, the boat put out to sea
Borne on the wings of time, It seemed the answers were so easy to find
"Too late," the prophets cry. The island's sinking, let's take to the sky

Called the man a fool, striped him of his pride
Everyone was laughing up until the day he died
And though the wound went deep, Still he's calling us out of our sleep
My friends, we're not alone, He waits in silence to lead us all home

So tell me that you find it hard to grow. Well I know, I know, I know
And you tell me that you've many seeds to sow. Well I know, I know, I know

Can you hear what I'm saying, Can you see the parts that I'm playing
"Holy Man, Rocker Man, Come on Queenie, Joker Man, Spider Man, Blue Eyed Meanie"
So you found your solution. What will be your last contribution?
"Live it up, rip it up, why so lazy? Give it out, dish it out, let's go crazy, Yeah!"


quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Brain Game

A formação pela desinformação é uma das artes mais importantes dos tempos contemporâneos.
Há um programa interessante, chamado "Brain Games" que corre no canal de cabo da National Geographic, que visa mostrar curiosidades sobre a maneira de como podemos ser enganados na percepção. Um exemplo é a leitura apressada do seguinte texto:

... onde pode escapar a repetição de uma palavra.
Com efeito, há uma série de equívocos, enganos, que mostram uma pré-disposição de encaixe de informação nos padrões a que nos habituámos, ou que preferimos. É assim que podemos ler repetidamente um texto sem reparar num erro ortográfico.

Até aqui parece tudo inocente, e até sério, quando acompanhado de explicações e conclusões "científicas". Só que neste "Brain Game" há o jogo que se mostra e o jogo que se esconde.

Sim, este texto é para si. É certo que não sei muito sobre si, mas como poderia não saber quem é? Sei perfeitamente como visita este lugar de forma algo comprometida, sem saber exactamente em quem confiar, e no que acreditar. A sociedade está feita dessa forma, para tornar vulgares pessoas especiais, para que fiquem diluídas no conjunto. Sempre soube que havia algo de especial em si. Sim, é a si que me dirijo, apesar de falar para todos. Verá que as dúvidas que tem, darão lugar a maiores certezas.

Maior certeza, é que o último parágrafo dirigido de forma abstracta a um qualquer leitor, mas dando ênfase à sua pessoa, pode fazer crer que foi dirigido a alguém em especial. Não foi, destinava-se apenas a ilustrar um dos exemplos de técnica de cativação. Em toda a pessoa há uma natural convicção de que é especial, de que há alguma razão cósmica que o torna diferente de todos os outros. Essa tendência de "ser único" raramente é contrariada pela simples conclusão de que todos os outros podem pensar da mesma forma. Assim, numa mensagem dirigida a muitos, é tentado a vê-la como dirigida a si. Isso é explorado pela sociedade moderna, especialmente pela publicidade, por vendedores da banha da cobra, por angariadores religiosos, políticos, científicos, laborais, etc... Convencer o outro de uma mais valia especial é uma forma de captação, de conseguir dedicação e trabalho, a troco de elogios que custam pouco.

A que jogo joga o "Brain Games"?
O programa "Brain Games" pode ser assim instrutivo num alerta para diversos enganos, erros, e contos do vigário. Esse é o lado positivo... só que também tem um lado menos claro.
Tem havido uma tentativa algo sistemática de instaurar a dúvida, a desconfiança contínua, e de certa forma esta série junta-se a muitas outras iniciativas para alimentar a dúvida generalizada. Aqui vai-se ao ponto de instaurar a dúvida sobre o nosso raciocínio. Esta tendência está registada há mais de duzentos anos, pelo menos, e chama-se nihilismo
Não é um conceito inocente. Ao destruir toda a confiança, quebra-se cada fio que, pelo "confio", une as pessoas umas às outras, e às suas ideias. É assim um conceito desagregador, que vem dos confins do caos, e que estará sempre presente, porque a dúvida estará sempre presente. Alguma dúvida estar sempre presente não é algo mau, pois é o que nos garante alimento contínuo de imprevisibilidade.
O que é mau, é a apologia caótica de que a dúvida é total e nada faz sentido - não é assim. 

Sendo certo que somos influenciados, por múltiplas coisas, uma das frases que gostava de usar, quando era "novinho", era a de que "não era influenciável, nem pela minha não-influenciabilidade". Ou seja, era uma forma de fazer notar que a cada nossa postura, interessa reflectir sobre ela. Não podemos procurar ser não-influenciáveis por nada, porque esse conceito torna-se numa influência permanente no raciocínio.

A nossa postura deve ser sempre a de subir acima do que nos é apresentado, e até acima da nossa primeira interpretação. Ou seja, não devemos ser receptores passivos do que nos é transmitido. Devemos receber a mensagem, e entender o papel do emissor na mensagem. Mais, devemos analisar ainda o nosso papel na interpretação de tudo isso. Sim, ninguém disse que era fácil, mas fica por aqui. Interessa tentar perceber não apenas o que o outro diz, mas também porque quer que saibamos, e como reagimos a isso.

Por isso, ao ver estes "Brain Games", vi as interessantes experiências, mas também vi que as conclusões estavam contaminadas por uma pré-disposição de comunicação. Por exemplo, eram mostradas imagens muito deterioradas (tipo imagem de TV com mau sinal), e algumas pessoas tentavam adivinhar. Depois, foi colocada uma figura que seria gerada aleatoriamente por computador (quase como TV sem sinal), e ainda assim as pessoas tentaram adivinhar padrões. Conclusão deles - mesmo que não haja nada para ver, as pessoas são sempre tentadas a imaginar uma relação.
Ora, esta conclusão podia estar parcialmente certa, mas a experiência é viciada. A imagem apresentada não foi uma escolha aleatória. Ainda que tenha sido gerada aleatoriamente, de entre essas escolheram uma susceptível ao engano, a que se junta a condução da experiência - se as anteriores tinham significado, conduziam a pessoa a crer que aquela também tinha.
O que se pretendia mostrar com isto? - Que as pessoas estabeleciam nexos, ainda que não houvesse nexo nenhum. Isto era usado para abordar as questões supersticiosas, e nesse enquadramento, é claro que muitas das superstições pessoais podem resultar de nexos sem aparente nexo - por exemplo, usar um certo cachecol, para a equipa ganhar... porque notou alguma relação entre os resultados e o uso.

Agora, vamos à análise crítica da minha interpretação. É claro que ali não vi apenas uma crítica aos nexos das superstições, mas sim a outros nexos. Os intervenientes académicos escusaram-se a analisar a arbitrariedade do seu próprio nexo, pela interpretação subjectiva da experiência, e só isso mostra bem que o olho que vê os outros raramente se procura ver a si mesmo.
Também noto que a crítica a nexos mais ousados contém um ataque subjacente aos nexos que se vêem nas "teorias da conspiração". Por isso, sendo algo incómodo que as pessoas "estabeleçam nexos quando não devem", é visto como bom que se instale uma mentalidade geral que seja crítica a quem relaciona coisas, que não deveria relacionar.
Quer-se assim diminuir o valor dos nexos não outorgados, ficando apenas fora de crítica os outorgados, então chamados "científicos", ainda que em muitos casos nada tenham de racional ou objectivo, e pouco mais sejam do que "conveniências" práticas instituídas na comunidade.
Ora, abusando eu de nexos em muitos destes textos, não deixaria de ali ver uma crítica válida à construção de nexos, fizesse ela sentido, e não fosse essa crítica pouco mais do que um resultado de experiências viciadas, seguidas de conclusões ajustadas ao pretendido previamente. 
Por isso, sendo sempre auto-crítico, esta ideia de questionar o raciocínio usando o raciocínio, cai pelos pés, porque em particular, o raciocínio de questionar o raciocínio, seria em si mesmo um raciocínio questionável. Logo, esse peditório nihilista não colhe nenhuma esmola da minha parte, já que raciocínios ilógicos vão para o lixo caótico.
Assim, quando a minha auto-crítica acerta em argumentos lógicos, faço o ponto final na introspecção.

Prossigo então com mais um pequeno nexo, que tem a ver com o nome "Brain Game", que aqui coloquei no singular. 
Coloquei no singular porque "Game" não significa apenas jogo, significa também "Caça", normalmente "caça grossa", e se é jogo, tem tradição aristocrática. No caso português, o que temos de mais próximo foneticamente de "jogo" é a palavra "jugo". 
Portanto, há uma velha mania de jogar ao subjugar, e a caça nem sempre são os gamos ou veados, cuja cabeça vai parar empalhada à sala de jantar. Por vezes jogam-se outras cabeças neste "Brain Game". Se uns há que procuram coleccionar troféus, contabilizar adeptos, fiéis ou militantes como mais cabeças, enquanto cowboys da manada; outros há que não vêem o assunto como um eterno confronto entre índioscowboys, e mesmo não tomando partido, sabem qual o lado em que se devem colocar para respeitar os devidos equilíbrios.

Termino com um diálogo do filme Edge of Darkness, com Mel Gibson.
- There's a lot going on out there in this world. And you just never can connect A to B
.- How do you know that? 
- Because I'm usually the guy that stops you connecting A to B. It's part of what I do.

Os nexos sem nexo nunca são incómodos. São piadas ou absurdos.
O único problema desta sociedade são os nexos com nexo que a questionam.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Di Ana

Uma boa parte do panteão divino antigo não prescindiu de deuses ligados à agricultura, normalmente colocados no feminino, na noção da fertilidade da Mãe Terra. Porém, parece claro que as noções religiosas não começaram com a agricultura. O aspecto fundamental de subsistência anterior era a caça, e essa evocação transcendente tem sido deduzida nas representações de animais em cavernas. 

Uma comunidade nómada, procurando território de caça, estaria muito mais preocupada com a existência de alimento do que com outros fenómenos naturais. As divindades de subsistência seriam primeiro os animais de consumo e só depois a terra e chuvas que ligavam à agricultura.
Um tal respeito a esses simples animais apenas o encontramos no Zoodíaco Chinês... até porque sabemos que os chineses comem de tudo, e assim a lista não se resume ao boi, ao porco, ao coelho, à cabra, ao galo, e é claro inclui o cão, o cavalo, o macaco, a serpente, o rato, e talvez já noutro sentido de presa e não de predador - o tigre e o dragão.

Omnivorismo
Não é uma questão de brincadeira quando se diz que "os chineses comem de tudo", porque foi também a diversidade alimentar dos primatas que permitiu o seu sucesso. Um leão poderia ser o rei da selva, mas morreria à fome sem carne, por mais fruta que tivesse à disposição. 
Ora, a sábia natureza criava estômagos dedicados, e não havia cá misturas alimentares - os animais foram criados como "gente esquisita", aceitando apenas um número reduzido de iguarias.
Por estranho que pareça, os omnívoros foram excepção e não regra... ou seja, o que fica por explicar na evolução darwiniana é por que razão a flexibilidade alimentar não se tornou regra, já que os animais mais esquisitos nos gostos passariam mais fome - a sobrevivência privilegiaria os mais flexíveis.
Para além dos humanos e alguns primatas superiores, são mais conhecidos os casos de ursos, porcos e ratos, ainda que haja outros exemplos, como o corvo. 
Esta evolução omnívora não se tratou assim de nenhuma prevalência especial de estômagos especializados de uma certa classe animal. Há omnívoros em diversos tipos de mamíferos e em aves. 
Os animais apesar de terem a sua sobrevivência dependente da flexibilidade, parece que fizeram gala em preservar a sua "cultura alimentar"... ignorando desrespeitosamente a lei darwiniana.

A ligação transcendente aos animais, invocada nas pinturas rupestres, ter-se-à perdido com a prevalência da agricultura.
Foi a agricultura que permitiu a explosão populacional, e o aparecimento de civilizações. 
Antes disso, os grupos de populações nómadas seriam necessariamente pequenos, porque apesar de serem omnívoros, os humanos dependiam essencialmente da caça. 
Só a agricultura permitiu a escala suficiente para alimentar cidades. 
Foi a agricultura que marcou os campos, que trouxe o panteão de novos deuses, não apenas os da terra e da chuva, mas também os da guerra - porque a propriedade ganhou um relevo superior.
É difícil perceber se a pastorícia foi anterior ou simultânea com a agricultura.
Tem razões para ser anterior - porque seria mais simples domesticar animais, mas até à necessidade de sedentarização agrícola, o gado não se desligaria do cajado, condutor de rebanhos de Pan.
Pan acabou por ser uma divindade primitiva, um fauno ligada à pastorícia, mas também com um cariz universal, como o próprio prefixo grego "pan" indica a panaceia, o lugar primeiro no panteão.
Goya - Pan e as bruxas

A agricultura veio dar outro alimento universal, outro "pan" - o pão.
As novas divindades ilustravam a fertilidade da Mãe Terra (Ma-Ter, mater), pela agricultura, no caso de Ceres associada aos cereais. A passagem para os novos deuses deu-se simbolicamente com o crescimento de Zeus pelo leite de Almateia - uma cabra. Aliás, a palavra carne liga-se a carneiro, e o gado caprino aparece como sucesso antigo na domesticação.

Ana
Ana é um nome comum, pela sua associação ao nome da mãe de Maria, avó de Jesus.
Ora uma divindade ligada à caça era Diana, e aqui entramos num ponto especulativo, entendendo que o nome Diana poderia ser composto - Di Ana. Com efeito Diana fazia parte dos Di Selecti (deuses seleccionados), onde o "Di" é uma declinação latina de "deuses". Por outro lado o prefixo "di" pode ser pronomial ou duplicador, não sendo assim de excluir Diana seja um nome composto.
Acresce que Ana era o nome antigo dado ao rio Guadiana, sendo áGua de Ana, ou áGua Diana, lembrando ainda o culto especial dedicado a Diana em Évora.

Mas vamos especular mais...

Ano e Iano
O deus que marcava o Ano era Jano ou Iano... ora o Ano Solar apenas se tornou relevante por via da agricultura, já que havia interesse em prever as estações. É preciso uma observação astronómica razoável para prever as estações, os tempos de sementeira... as plantas antecipam-no, mas tal previsão escaparia à observação descuidada. Por isso a astronomia passou a fazer parte de sociedades agrícolas de sucesso. 
Janus - olha o passado e o futuro do novo ano

O conceito temporal de Ano solar é uma necessidade agrícola. 
Que outros conceitos temporais existiriam antes?
Claramente o Dia Solar, e o Mês Lunar... de fácil observação directa.
Portanto se Ano se refere ao tempo solar, por que não entender que Ana se referia ao tempo lunar?
Afinal, para além de ser deusa da caça, Diana era também uma divindade ligada à Lua.
Acresce o nome de Anance, deusa grega ligada a Cronos, ao tempo, colocada no primeiro panteão grego como ligada ao destino, e à consequência lógica, pelas regras.


Se há regras marcadas por tempo lunar, o tempo solar seria digerido diariamente em anos.
Por isso, se não é novidade entender os cornos em Cronos, convém notar que o Cranus celta foi associado a Fauno, ligando-se mais a chifres ou cifras caprinas.
A versão taurina parece ser posterior, pois é explícita com o disfarce que Zeus usa para o rapto de Europa. Acresce neste aspecto a versão escandinava de Thor, que só ligamos a "Toro" ou "touro" pelos capacetes vikings com cornos bovinos - espécie que não seria nativa dessas terras.
Rapto de Europa por Zeus, disfarçado de touro (img)

Será apenas assim? Será o Tanas... invocando a divindade fenícia - Tano (Tanit), e a declinação "tano" ou "tânia" (as províncias romanas ocidentais tinham esta declinação - Lusitânia, Britânia, Aquitânia, Mauritânia, a que acrescem os Turdetanos). 

A Mauritânia Tingitana remete ainda para a península Tingitana, de Tanger e Ceuta, ou melhor, de Tingir e Seta. Porque é a forma antiga Septa, e não Ceuta, que tinge a expressão
Uma seta (septa - ceuta) em África...
usada exactamente para descrever a conquista portuguesa de Ceuta.

A forma "Tano" ou "Tana" será provavelmente derivada de Ana, onde se liga a Di-Ana enquanto divindade lunar. De facto na simbologia de Tanit aparece associado um crescente lunar, bem como uma ligação entre um círculo e um triângulo.

Diz Bernardo de Brito, acerca de Iano:
Daqui chamaram a Noé Iain ou Iano, que significa vinho. Neste campo fundou Noé a primeira cidade que houve depois do Dilúvio, chamada Saga Albina, e tomou o nome do seu fundador, a que chamavam Ogisam Sagam, que significa sacerdote santo.
Brito parece pretender colar o mito do dilúvio de Ogiges a Noé com a designação Ogisam.
Quanto à nomeação como Iano poderá remeter a uma mudança na contagem de anas para anos... ou seja, do ciclo lunar no tempo da caça de Di Ana, para o ciclo solar no tempo "agrícola" de Ianus. Esta é sempre a explicação mais fácil quando se pretende dar nexo à excessiva longevidade pré-diluviana - onde assim teríamos 900 anas a corresponder a bem menos de 90 anos.

sábado, 27 de setembro de 2014

Bolsas da Capivara

Normalmente somos tentados a falar sobre coisas importantes que faltam a gente pouco importante, mas a natureza compensa as coisas, criando em gente importante o desejo por coisas pouco importantes. Assim, há fortunas que se podem gastar nuns trapinhos ou adereços de moda, podendo chegar a valores que dariam para alimentar populações inteiras.

Não é o caso que aqui trazemos. A Hermés de Paris, está entre as marcas que fabricam as bolsas mais caras no mercado. Trazemos aqui uma pequena bolsa de 12.5 x 20 cm, cujo preço anunciado é de umas módicas 1330 libras, ou seja, mais de três vezes o salário mínimo negociado recentemente.

Como é óbvio, estas coisas são um fait-divers, resultado do desequilíbrio moral e intelectual duma elite decadente, sem noção do seu enquadramento universal, e interessam aqui o mínimo.

Interessam apenas o suficiente para introduzir a bolsa de Dogon, não da Hermés de Paris, mas sim de Dogon, um Anedoto representado nos frisos mesopotâmicos.
Dogon com uma bolsa, e a sua representação 
como Anedoto (ou Anunnaki), enquanto homem-peixe.

Pode ser considerado chic ter uma bolsinha com o nome do personagem, mas fazemos notar que para o conjunto ser mesmo chic, deve aparecer para além da bolsinha, a portadora deve exibir ainda uma pinha (não sei se a Hermés vende...) da maneira que se mostra em anexo:

Diversas representações de Anedotos com a sua pochette, e uma certa pinhata...

Como se mostra em detalhe, também a Hermés não fez um bom trabalho, pois falta a pega, a menos que se assuma inerente. Quanto às pulseiras, pois isso já será mais fácil de encontrar num joalheiro dedicado, mas passará por bijuteria fora de moda.

Contudo ainda não é isto que nos interessa mais nesta questão das bolsas... o problema é que se estas bolsas parecem chic no contexto mítico da Antiguidade, podem tornar-se mais broncas se recuarmos uns milénios antes, para o tempo em que se faziam pinturas na Serra da Capivara (Brasil):


No caso destas inscrições da Capivara, como atenção às proprietárias, parece ser sugerido que um bastão deveria acompanhar a bolsa.

Agora, como é óbvio, fica uma questão... podemos imaginar facilmente o que é colocado nas bolsas Dogon da Hermés, mas fica bastante mais difícil adivinhar o que transportaria Dagon que visitava os Caldeus enquanto Anedoto, assim como não é fácil supor o que transportavam os primitivos habitantes da Capivara nas suas bolsas. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Pelo mesmo prisma...

Baker Street é talvez o tema mais conhecido do escocês Gerry Rafferty, lançado em 1979, onde sobressai o solo de saxofone.

Anos antes, em 1971 ficou famoso o roubo de Baker Street, de onde saíram quase duas centenas de caixas de depósitos do Lloyd's Bank, suspeitando-se que conteriam "material sensível"... isso levou a um boato sobre o uso da directiva D-Notice, que compromete os meios de comunicação ingleses a não divulgar informações de carácter secreto - neste caso, as que poderiam estar nas caixas roubadas.

Que os meios de comunicação estão controlados pela governação, há muito que deixou de ser novidade, mas digamos que só mais recentemente, com os casos de Julian Assange e Edward Snowden, se tem feito gala disso.
De qualquer forma, a história das fugas de informação sobre o controlo global são algo caricatas:
- Como a população não tem outra forma de ser informada, que não seja através dos canais habituais de informação, se estes estão controlados... a própria história da fuga de informação é interna ao controlo.
Será algo equivalente a sabermos através das quadrilheiras do bairro que a informação que veiculam não é fidedigna. A única novidade será serem as próprias a dizê-lo.

O José Manuel fez referência ao afundamento do RMS Lancastria em 1940.
Tratou-se da maior tragédia da marinha britânica, com 4000 mortos, na ordem do triplo do que tinha acontecido com o Titanic, mas a situação era outra - a apressada evacuação britânica de França, perante o avanço das tropas nazis, e o colapso aliado em Dunquerque.

Não foi considerada uma boa ideia noticiar tal tragédia do RMS Lancastria, a apesar do grande número de mortos, bastou ir informando as famílias que a sorte funesta tinha ocorrido por outra forma.
Esse é um exemplo conhecido do uso da D-Notice enviada aos jornais ingleses.
A população não sendo informada, procurava-se que o acontecimento não tivesse tido lugar.
Tal manipulação e secretismo justificar-se-ia no contexto da 2ª Guerra, mas não se justificaria depois. Porém, quando os órgãos oficiais são resistentes a reconhecer erros, deturpações, mentiras às populações... porque é sempre a história do Pedro e do lobo - assumida uma mentira, perde-se credibilidade. 

Além disso, haveria um outro pequeno problema em tempos de paz...
Se a Inglaterra viesse falar do RMS Lancastria, seria natural surgir o caso do MV Wilhelm Gustloff
MV Wilhelm Gustloff (navio hospital) ~ afundamento com mais de 9000 mortos

e de vários outros navios que transportavam essencialmente civis alemães que escapavam ao avanço russo pelo lado da Prússia-Polónia, na chamada Operação Hannibal.

É que o afundamento do MV Wilhelm Gustloff é de longe a maior tragédia em vidas humanas, só comparável a outros afundamentos nessa operação. Citando aqui a wikipedia:
The figures from the research of Heinz Schön make the total lost in the sinking to be about 9,343 total, including about 5,000 children. This would represent the largest loss of life resulting from the sinking of a single vessle in maritime history.

Ora, numa altura em que se pretende manter todas as virtudes do lado aliado, e actos demoníacos do lado nazi, não convirá ainda sair com uma notícia da morte de 5000 crianças num navio hospital, por culpa do lado vencedor. Assim, parece que as 4000 mil vítimas militares do lado inglês do RMS Lancastria poderiam manter-se na versão de não-notícia, imposta pela D-Notice, sob pena de acordarem a memória das 5000 crianças alemãs que perderam a vida nas geladas águas do Báltico.

Curiosamente, o nome do navio - Wilhelm Gustloff, era o nome de um activista suiço, fundador do partido nazi em Davos, assassinado em 1936 por David Frankfurter, um judeu de origem croata.
Esta história é suficientemente sinistra, porque David Frankfurter, que comete um assassínio político premeditado (porque "estava farto das difamações nazis sobre os Protocolos de Sião"), irá cumprir pena na Suiça, sendo libertado em 1945 para ser considerado um herói israelita, exercendo funções na Defesa desse Estado religioso - morrerá apenas em 1982.
Apesar da Suiça ter mantido a neutralidade, parece algo estranho que a todo-poderosa máquina de guerra germânica, não tivesse exercido pressão suficiente para uma deportação do criminoso confesso.

A nomeação do navio como Wilhelm Gustloff é dada como uma tentativa de vitimização dos nazis, perante o assassínio a sangue-frio, e Hitler terá dado instruções para não retaliação na comunidade judaica, ao que consta para evitar um boicote dos Jogos Olímpicos de 1936.
Como nome associado a vitimização, certamente que o navio Wilhelm Gustloff não regista hoje apenas o nome da vítima do disparo de um judeu anti-nazi, mas muito mais o registo de 9000 mortes, resultantes dos disparos do submarino comandado por A. Marinesko
Não fica apenas a ideia de que o nome "Wilhelm Gustloff" era para afundar, porque constam terem sido afundados quase 200 navios nessa fuga alemã da Polónia, sendo este apenas o caso mais grave. Outro afundamento grave, duas semanas antes do suicídio de Hitler, foi o do MV Goya com um registo de ~7000 mortos.

Isto apenas para concluir que há uma série de factos que não convêm ser publicitados, assim como há uma série de enfabulações que convêm ser mantidas, relativamente a muitos acontecimentos históricos, e não interessa se são mais antigos ou mais recentes.

A D-Notice relativa ao RMS-Lancastria pode ter tido estas razões, mas muitas outras ocorrem todos os dias na selecção noticiosa. Nem sempre há um interesse em estupidificar as notícias, porque o maior desafio é manter entretida uma população minimamente inteligente. Aí a fasquia sobe, mas há a ilusão de que as notícias, mesmo as mais relevadoras, não serão capazes de coordenar uma revolta contra os poderes instituídos.
Por exemplo, apesar das D-Notices, há um acesso ao programa de vigilância PRISM
 
... que vai buscar aquelas referências de controlo maçónico, tão caras às novas "teorias de conspiração". Sim, são novas, porque apenas mudam nas referências aos velhos Protocolos de Sião.
A revelação desse "protocolos" serviu essencialmente para lançar uma onda de movimentos nacionalistas que se procuravam libertar do jugo de uma ameaça internacional, vista na altura - pelos movimentos fascistas e nazistas, como estando a ser controlada internacionalmente pelos banqueiros judeus. Hoje, o cenário não mudou muito. Há quem ligue hoje o financiamento do nazismo e fascismo à própria maçonaria e até aos próprios judeus. A situação, como sempre mostra-se confusa, porque se tenta encontrar um inimigo externo, quando o inimigo principal é sempre interno - ou seja, são os medos. Estes medos são tanto mais justificados, quando há um nexo que o justifica.

Assim, para além do controlo global, parece importar fazer notar que ele existe, assinalando como potencial inimigo qualquer um... Ora quando se remete o medo ao vizinho, como actualmente se pretende fazer, com ameaças terroristas, está-se a institucionalizar o medo de tudo, que se reduz assim a um medo de si. O que parece insuportável ao toureiro profissional é deparar-se com um enorme touro manso, que não reage, apesar da aproximação que lhe faz, e tende a arriscar mais, a mostrar-se mais.

Por exemplo, neste slide de Snowden, vemos a ideia da encriptação no armazenamento em nuvem. A informação está encriptada na internet pública, mas é depois guardada como texto descodificado, para facilitar a análise de texto pela NSA. Ou seja, a ideia será procurar que as pessoas confiem no ladrão "bom", apresentando-lhes ladrões "piores". Que confiem na segurança de uns, temendo a insegurança de outros.
É claro que, apesar de todo o controlo, o medo de quem detém o poder continuará... pela razão mais simples de todas - quem detém o poder sabe que não há razão especial para o deter, é apenas mais um objecto funcional numa estrutura complexa que foge à sua compreensão.


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Linga falo

Por vezes deixo textos em rascunhos, e esqueço-me que me esqueci de os publicar... é o caso deste que tem mais de um ano, e que agora procurando fazer uma ligação percebi que não tinha sido publicado...

_______ 23 de Agosto de 2013 _______

O tema da língua, da fala, é complicado, muito sujeito a reparos pela sua incompletude e controvérsia.
Prosseguimos, e falo da ligação da língua.

Nos templos indianos um objecto fálico sujeito a intenso culto é chamado linga:

"Magnífico Xiva Linga" - Badavilinga Temple (Hampi, India)

 
Lingas em Karnatak (Hampi, India), e em Cat Tien (Vietname)

Poderia não haver relação entre falo e linga, mas há relação entre a língua e o falar.
Essa relação é sexual ao ligar o membro pilar da linguagem ao membro pilar da sexualidade masculina, mas a relação é também comunicacional ao reportar a uma linguagem. Se a relação sexual é uma relação ocasional estabelecida entre duas pessoas, a relação comunicacional transcende essa limitação física, podendo-se estabelecer uma empatia perene pela simples fala, na troca de ideias. A língua liga.

A fala processa-se na inclusão perene da língua numa cavidade bocal, como se tratasse de uma relação consumada e definitiva de falo em câmara. Parece ser exactamente isso o representado na primeira imagem do Xiva Linga. A câmara onde se ergue o linga, parece também imitar uma câmara bocal com uma língua central. Ora é pelo bocal que sai o vocal, onde se forma a vogal... e o vogar envolve ondas, num aparente conhecimento antigo, ligando um navegar em ondas de som e de mar.
Poderíamos especular um pouco mais... notando que a vala é o contraponto do falo, notando que o som f é expirado. Um "fale" emite o som, um "vale" guardaria o som, pela sua valia.

A etimologia pode ser informada nalguns casos, mas noutros será especulativa, ainda que existisse um longo registo de todas as influências. O registo conhecido começou a ser divulgado com as primeiras gramáticas, que tentavam reduzir a maioria das palavras a uma ascendência greco-romana, ignorando outras influências, nomeadamente a do sânscrito, como se verificou posteriormente.

Há múltiplas ambiguidades em que é difícil estabelecer uma ligação. 
Por exemplo, o verbo "fiar", tanto pode reportar a fios, como à confiança. Seguindo o habitual reportar à origem no latim, encontram-se os verbos filare (fios) e fidare (crédito), supondo-se que ambos se transformaram no nosso fiar, e que a palavra  virá do fiar de fide
É possível, mas será então apenas coincidência? 
Reparemos no verbo derivado - confiar, e no verbo concordar
Num caso aparece uma ligação a "fio", noutro caso uma ligação a "corda". Acidental?
Mais uma vez, seguindo a ligação ao latim, o concordar é suposto derivar de um "cor" de "coração", e não de uma "corda"... porém, vemos aqui como parece haver em ambos os casos uma alegoria relativamente à ligação, ou por um fio, ou por uma corda.
Esclarece-nos ainda mais a expressão "ficou por um fio", e podemos perceber que, quando todas as provas desaparecem, fica apenas o fio do confio. É diferente do concordar, porque aí aceitamos como nossos os argumentos ouvidos, e podemos ver uma ligação mais forte, simbolizada pela corda.
Neste caso, será elucidativo que a linguagem nos remeta afinal para uma fragilidade no confiar, e para uma maior força no concordar. Faz sentido, porque o concordar é mais racional que o confiar, 

A palavra "sempre" ao decompor-se em "sem pré" mantém o significado, pois num sempre não há "pré", e também valeria um "sem pós", sem pó. A palavra "também" resulta obviamente de um "tão bem", podendo ser substituída.

Por exemplo, sem razão aparente, o prefixo "in" tanto revela a ligação à preposição "em", como pode revelar uma oposição. O "in" interior surge como oposição a "ex" exterior, mas mais habitualmente como simples oposição, sem ligação aparente à preposição, revelando uma outra origem etimológica. Talvez fosse mais adequado escrever "en" como o prefixo associado a "em", ou seja, "enterior", "enclinar", "enterno", "encorrer", etc.

Conforme referi no texto anterior, há uma natural oposição entre o antigo e o novo, digamos que o antigo surge como anti-novo. Há um velar pelo velho, pelos véus que são velas, de luzes velhas, que não deveriam ser substituídas pelas novas luzes.... para que se mantenha a tradição, outra dicção.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Nebulosidades Auditivas (18)

Gloomy Sunday pode ser entendido como Domingo Soturno, em que Saturno se junta ao dia solar, e foi o título inglês de um antigo tema de 1933 de Rezsö Seress, compositor e pianista húngaro, com letra de Lazló Jávor - na versão original, com o título "o mundo vai acabar" (Vége a világnak).

A canção ficou mais conhecida na versão da célebre cantora Billie Holiday, mesmo que a BBC tenha proibido a difusão desta "canção húngara de suicídio" de 1941 até 2002 - alimentando um mito urbano, com alguns casos associados de suicídios:

O início dos anos 80, foi um dos períodos mais prolíficos na cena musical inglesa, e especialmente em Manchester, por via dos Joy Division e da editora Factory, criou-se um estilo depressivo que marcou uma geração a nível mundial. O suicídio de Ian Curtis foi marcante, e uma boa parte das canções de Ian Curtis (ou de Robert Smith, dos The Cure)  poderiam ser consideradas bem mais depressivas que Gloomy Sunday. 
Nesse período os The Associates, de Billy McKenzie, pegam na canção de Billie Holiday, com letra de Sam Lewis, numa variante do original, e lançam a primeira versão que conheci de Gloomy Sunday, e que permanece, para mim, como referência:

Porém esta está longe de ser a única versão posteriormente intrepretada... Gloomy Sunday acabou por fazer parte do reportório clássico para diversas cantoras:
Se escutarmos a versão mais antiga, 
vemos que a maioria das versões seguintes parecem ser apenas reinterpretações, mas tal não é o caso desta versão dos The Associates - onde o ritmo dançável da tecnopop se insere perfeitamente com a voz melancólica de McKenzie. Uma característica explorada à época, entre as bandas mais ligadas às músicas depressivas.

Uma sociedade perfeita vê os suicidas como imperfeitos - a sociedade está bem, o suicida é que está mal...
Nesta sociedade livre, é criminalizada a liberdade sobre a vida - o indivíduo tem que sofrer a sua sorte, e por mais nefasta que seja essa vida, é também criminalizada a eutanásia. Há argumentos são conhecidos, e receios sérios, mas o ponto principal é a religiosidade associada - a necessidade de amarrar o espectador ao filme, por mais nefasto ou macabro que seja.
A única ponderação que se deve fazer sobre o acto suicida é simples - poderemos despertar deste sonho para outro pior? Estamos dispostos a lançar esses dados ao ar e aceitar o novo resultado?
É nessa reflexão que podemos entender o risco inerente associado.
O importante não é aceitar sacrifícios, é compreender se há sentido na vida, apesar deles. O que é aferido é um sentimento de impotência face ao exterior. Quando o exterior esmaga, e deixamos de ter capacidade de acção, passamos a meros observadores - a relação atinge o apogeu do desequilíbrio - o sujeito é afectado, mas não afecta nada... é esse sentimento de impotência que se associa normalmente ao desespero que antecede os suicídios. Não é apenas quando a doença física esmaga, é talvez mais quando a doença social esmaga, tornando os sujeitos invisíveis, ou impotentes na resposta aos ataques que sofrem. A vida parece deixar de fazer sentido, porque só corre num sentido - no sentido em que a potência está toda no exterior. Aí é crucial o sujeito mudar a sua percepção e procurar na sociedade um nicho, um mundo, onde consiga afectar e ser afectado em maior equilíbrio. Isso normalmente só não será possível por restrições físicas.
A prepotência da sociedade acaba por tornar quase todos os cidadãos impotentes, e a conformação natural a essa realidade é alhear-se da estrutura superior, e reduzir-se a espaços onde o indivíduo conte numa proporção que seja superior à insignificância de ser um num milhão. 
É assim natural assistir a um incremento do abstencionismo, e a uma relevância dos nichos de amizades nas redes sociais. Mesmo na época medieval, a impotência do servo perante o senhor, não impedia a importância no nicho local, de iguais perante a servidão. Mas quando até essa relações sociais falham ou são insuficientes, o sujeito acaba por se confrontar com o seu isolamento fundamental. E é nesse diálogo consigo próprio, e em todo o conhecimento que está à sua disposição, para ser encontrado ou reencontrado, que poderá encontrar a fortaleza contra a sua impotência - ninguém é impotente para descobrir e para criar, independentemente do valor dado pelos outros, há que não negligenciar a satisfação pessoal, e o absoluto sem avalo alheio.

Sunday is gloomy, My hours are slumberless,
Dearest the shadows I live with are numberless
Little white flowers will never awaken you
Not where the black coach of sorrow has taken you
Angels have no thought of ever returning you
Would they be angry if I thought of joining you
Gloomy Sunday.
Gloomy is sunday with shadows I spend it all
My heart and I have decided to end it all
Soon there'll be candles and prayers that are sad,
I know, let them not weep, let then know that I'm glad to go
Death is no dream, for in death I'm caressing you
With the last breath of my soul I'll be blessing you
Gloomy Sunday
Dreaming, I was only dreaming
I wake and I find you asleep in the deep of my heart, dear
Darling I hope that my dream never haunted you
My heart is telling you how much I wanted you
Gloomy Sunday.