domingo, 17 de março de 2013

Hélgia (2)


Sem travessão, fala-vos o narrador, um mensageiro que é usado para fazer uma ponte entre o leitor e os personagens, servindo na maioria dos casos para descrever o contexto. Há confusões entre o narrador e o autor, porque a sociedade individualizou-se, fragmentou-se numa análise caótica dos seus propósitos, da sua razão de ser, e a síntese que foi fazendo foi a da castidade dos propósitos. As castas não englobaram o todo, e nessa síntese deficiente criaram novos fragmentos, novos gastos dos castos. Se em última análise, ninguém é culpado do que é, também ninguém pode esperar passar entre os pingos da chuva sem se molhar. Resultado da crescente cultura individualista, do convívio de egocentrimos, é dada demasiada importância à autoria, esquecendo a mensagem. O narrador faz parte da mensagem, o autor desliga-se dela, acabada a obra, a menos que decida fazer reedições. O nome do autor não é mais do que uma etiqueta, que poderá servir como palavra-chave para textos similares, ou para um aprofundamento do contexto que rodeou a obra, através de críticas integradoras, ou biografias.
Entra agora o narrador para explicar a sua inutilidade neste texto. Levado a encenação teatral, o encenador poderia simplesmente optar por colocar palavras iluminadas sobre uma parede negra, mas também teria liberdade para decidir o número de actores e atribuir-lhes as frases que quisesse. Pode, e é, em certa medida, um monólogo... mas esse contexto introspectivo, ou de simples discussão entre dois ou três personagens, seria claramente deficiente.
Após esta pausa, reentram os personagens.

- A figura dos biliões de gaivotas é a da expansão das ideias. As associações formaram-se automaticamente gerando todo o universo, formado por instâncias de si mesmo... porque não pode haver outra atomicidade. O átomo é todo o universo. Só que, claro, há diversos níveis de associação que geraram a complexidade.
- O átomo é todo o tomo, todos os livros, todas as ideias, o todo...
- Isso! Se quiseres é o A-tomo... mas também o Z-tomo.
- Não seria Omega-tomo?... e não é uma gaivota, é outro pássaro na canção da Laurie Anderson.
- O que é que esse detalhe muda? Para mim, a Gaia vota, e por isso escolho a gaivota.
- Olha, olha, as abelhas Maias, ou são tarantólogas? 
- Para ti, a conjugação do verbo ouvir na tua pessoa, é ouço, do meu osso. 
- Já sei que me julgas serpente rastejante, sem coluna vertebral, mas afinal não foi essa que nos ofereceu o conhecimento?
- E conhecimento sem compreensão pode ser perigoso... pode ser como colocar armas em mãos de crianças. Porque o problema é que há conhecimento científico letal à disposição de pessoal com compreensão de crianças, mas que se julgam adultos responsáveis.
- Conclui-se que me achas mesmo serpente rastejante... eh! eh!
- Sabes que não é isso. Se assim fosse, diria que a conjugação não era "ouço", era "ouvo", do ovo da serpente. Simplesmente os qualificativos insultuosos não trazem nada de novo. Usam-se outros de resposta, e começamos a dança. Ora, como sabes, não aprecio essa coreografia programada, mas sei que faz parte de rituais de acasalamento.
- Ui, ui! Já estão a desatinar? Já chegaram há muito tempo?
- Nem por isso... estamos a chagar, depois havemos de lá chegar.
- A cura das chagas... faz parte, faz parte!
- Estava aqui a pensar na questão dos cortes... Podemos pensar que, na mitologia grega, se Gaia representa as ideias vindas no caos universal, Úrano poderia representar a sua associação ordenada. Cronos/Saturno seria então uma opção de eliminação em linha contínua temporal. Ou seja, o corte de Cronos (o corte dos cornos... eh eh), seria uma opção pelo esquecimento do passado e imprevisibilidade do futuro.
- Vocês falam disso como se esses deuses tivessem mesmo existido! Que tourada...
- Ninguém disse isso, nem o contrário. Não estás a ver um boi... O que estamos a ver é que parece haver uma racionalidade profunda nos mitos antigos. Chegámos lá doutra forma, mas também com ajuda dessas ideias antigas.
- Sim, há diversos níveis nos panteões divinos, mas há uma lógica emanescente. Mais notável, essa lógica parece ter-se codificado na linguagem, de forma algo inconsciente.
- A começar, a que treta é que vocês chamam "Maia"?
- Já lá vamos, estávamos ainda em Gaia, a chegar à Raia. Eu diria que Raia é a fronteira de Gaia definida pelo corte de Cronos. Raia seriam todas as ideias no presente, incluem memória do passado, e modelação do futuro, mas ambas imprecisas. É um presente que é um pré-sente, não sente tudo, mas também não é apenas uma fotografia sem movimento. O corte terá pelo menos três camadas. A do instante presente, a da memória passada, e a da modelação que pode prever algo do futuro.
- Sim, e o corte de Cronos tem a memória, uma parte mecânica, instintiva, que modelaria o futuro, por exemplo, para efeitos de locomoção animal.
- Mas não tem a compreensão interna das ideias...
- Exacto, isso só vem com Zeus. Porque o corte de Cronos gera novas ideias, relacionadas com a limitação temporal. Se a ordenação de Úrano deixou fora da luz do conhecimento muitas ideias caóticas, o corte de Cronos, ao rasgar um curso do tempo, gera novas ideias, ao mesmo tempo que remete outras para o esquecimento. 
- Pelo que entendo, há assim diversas formas de luz. Primeiro, Úrano só traz à luz o que está ordenado, depois Cronos limita a luz ao presente, que inclui a adição de memória e previsibilidade futura parcial.
- E o que fez Cronos com as novas ideias, geradas pelo seu corte?
- Engoliu-as!... Por isso a questão mitológica de engolir os filhos - a personificação das novas ideias que tinha criado pelo corte temporal.
- Só com Zeus é que teremos uma inclusão dessas novas ideias, podemos ver aí uma nova luz.
- Mas também novas trevas... já dentro do corte temporal de Cronos há umas ideias que não queremos ter, mas outras são aprazíveis. A divisão entre bem e mal começará com Zeus, vai para além do que é caos e o que é ordem, na original divisão de Úrano.
- Não esquecer que a mãe Raia dá a Zeus, o quê? Raios...
- Sim, o corte do tempo na posse de Zeus, será depois o do tempo atmosférico. Este ioga da joga de palavras, é lixado...
- Resta saber se não é autoformado... porque a questão é sempre a mesma, de onde aparece a inspiração que leva ao pensamento, que leva à acção. Mesmo tratando-se de deuses pensantes, uma sua escolha teria origem nas musas, que bebem do caos a inspiração que enviam.
- Depois há ainda a questão das dimensões espaciais... serem apenas três.
- Antes disso, antes disso... não me responderam sobre a Maia!
- Ok. Aliás, OK Curral... mas depois a gente brinca. Zeus aparece com Hera, e as Eras são um corte histórico, as heras apagam o registo humano, etc. Isso pelo lado grego. Pelo lado romano, temos Juno associada às nuvens, enquanto que Júpiter se mantém associado a raios e tempestades. As nuvens dão chuva, mas também tapam a luz. Ou seja, identifica-se assim mais um problema... a oclusão histórica, eventualmente pela escolha do passado "conveniente", na tal ideia de bem/mal, ou céu/inferno.
- Sim, pela falta de compreensão, houve ideias que foram suprimidas. Foi ajustado um passado histórico que até encaixava numa certa ordem... mas Gaia não esquece os seus filhos do Caos, que caíram fora da hierarquia da ordem.
- Maia representa assim o encaixe de tudo, o caminho para o conhecimento completo de Gaia. Será de Maia, reprimida, que nascem os humanos. Já não são deuses. Porque os deuses são imortais, não conhecem a real perspectiva da mortalidade, da finitude, essas novas ideias apareceram com os homens. Por isso, os humanos e Prometeu foram tão mal tratados... porque a solução completa não está na mão dos deuses, porque há ideias que eles já não podem ter - por exemplo, a da mortalidade.
- Espera aí... Maia não aparece assim na mitologia.
- Eu sei, mas quem disse que a história tinha acabado? Ainda nem falámos dos 12 signos, das 12 horas, que às 13 voltam a apontar para o 1. Não foste tu que falaste da tarantóloga? Olha, não fui eu que inventei estas coisas, apenas estou a tentar juntar as peças.
- E por falar nisso, a da profecia dos Maias, falava especificamente no dia, ou no ano? O ano já acabou? Já lhe contaste do trânsito de Júpiter por Touro, e da passagem pela Nebulosa de Cancer, na altura do solstício de Verão de 2013?
- Eu não ligo muito a isso, sabes bem... mas também é verdade que há uma série de coincidências que têm sido difíceis de encaixar como tal.
- Espera lá. Estás a dizer que são os humanos que têm que resolver um problema divino?
- Fala-lhe das dimensões... ele não está a ver o filme 4D.
- Sobre o 4D não há muito a dizer... Cada dimensão 3D é como uma folha de papel em dimensão 4D. Um ser 4D pode fazer uns bonecos 3D para se divertir, tal como uma criança faz um boneco numa folha de papel. O problema é que em 2D não há vida, em 3D aparece... e não são animaizinhos.
- Na perspectiva de deuses podem ser vistos como animaizinhos...
- Ou seja, se quiseres, numa perspectiva 4D, os animaizinhos estariam num aquário 3D a serem observados, como num écran de computador. Mas vêem mesmo tudo, da mesma forma que nós vemos um boneco 2D por completo no seu interior. Ora acontece que os humanos têm a possibilidade de se verem a si próprios... para além do corpo, no campo das ideias. Porque tudo, tudo são ideias. Ou seja, pelo menos alguns humanos podem ter uma dimensão para além da material, em 3D. Deixaram de ser bonequinhos... têm a alma. E ainda que se desprenda desta parte 3D, pode ter lugar aí, na parte do raciocínio que nos permite ver a nós próprios, e que estará nessa dimensão superior, digamos 4D.
- Estás a ver, isto enquadra aquela noção de almas que vão para o céu... escolhidas pelos que se portaram bem, ou para o inferno, para os que se portaram mal. Passamos para guerras em dimensões superiores.
- Pois, mas eu creio que isso já foi tudo resolvido, se Gaia considerar que pelo caminho de Maia, os humanos vão finalmente ter a potencialidade de trazer luz a todas as ideias. Repara, esta questão da personificação, estou-me a borrifar para saber se é real ou não. A realidade é algo diferente do que se julga, é essencialmente uma sincronização para uma verdade. Cada um tem ideias próprias, sonhos, mas conjugam-se todos num mesmo campo, na realidade da Terra. E a questão da relatividade é uma meia-idiotice. A relatividade estabelece-se entre duas coisas, não entre múltiplas coisas. Quando há múltiplas coisas, tem que haver um sincronismo, um referencial.
- Sim, nota que o mundo material nunca seria suficiente para encaixar e explicar o espírito humano.
- Em nenhuma dimensão... porque as coisas não param necessariamente a 4D, 5D, ou o que for...
- Não o vamos assustar com os mergulhos em Neptuno?
- Que história é essa?
- Para já é uma brincadeira... repara, grande parte das restrições foram questões parvas de medos incutidos. Se houve intervenção divina... não foi por mal. Pensa nos deuses como crianças que têem um poder, uma sabedoria, infindável, mas... não têm necessariamente superior compreensão. De acordo com as mitologias, os deuses não poderiam ser mortos, mas aprisionados. Ser aprisionado eternamente... é como ser comido vivo, mete medo. Ficariam eventualmente condenados à Montanha de Sísifo... 
- Sim, é uma estorieta engraçada, e daí?
- Daí, que no mundo ordenado gerado por Úrano, em Gaia, há agentes "caóticos"... os tais que não viram a luz, e que surgem como monstros, mesmo para deuses, em dimensões superiores. Repara que um ser em 3D pode ser aprisionado num aquário tal como uma formiga, que se move em 2D, pode ser limitada por um copo que a aprisiona. Isto é válido em qualquer dimensão...
- Daí o mandamento por via do ioga - "não me atarás"... "não matarás".
- Só para dizer que há uma sequência que sempre me intrigou. Pelo lado dos planetas, Úrano, Saturno, Júpiter, que está na ordem mitológica correcta. Acima de Úrano, temos Neptuno, o deus dos mares. Mas não é dos mares terrenos que falamos. Os problemas teriam-nos sidos colocados na Terra para que pudessemos resolver conflitos a nível superior, por causa da nossa elevada compreensão. A nossa escassa memória obrigou-nos a deduções notáveis com pouca informação. Nesse sentido a autorização para chegar à América seria como gratificação divina da resolução do problema dos mares de um Neptuno de dimensão muito superior. É o Neptuno do caos, que ficou fora da ordenação de Úrano, era esse Neptuno que Gaia exigiria que fosse conhecido.
- Esta é uma história de várias camadas... própria do Cebolinha!
- Já agora, digo-lhe a outra...
- Tem mais? Vocês têm imaginação, pelo menos!
- A seguir a Júpiter vem o quê?
- Na aproximação à Terra, Marte.
- Amar-te em Marte, é para depois... eh! eh! Antes disso, temos a cintura de asteróides. É como se houvesse uma repartição altamente estranha, e potencialmente ultra-instável, de corpos celestes. Pode ser um convívio pacífico de corpos celestes, ou pode descambar em carambolada marciana.
- Sim, e pelo lado do Sol... temos Mercúrio-Hermes e Vénus-Afrodite, que anunciam a alvorada. Hermes é o mensageiro, filho de Maia, mas também foi visto como Cupido filho de Vénus, que pode ser associada a Maia.
- Daí a mensagem...
- Qual mensagem? Tudo isso não passam de associações mirabolantes, algumas coincidências, e muita imaginação.
- Claro que sim!
- Óbvio, não se está a ver?... depois falamos!
- Ainda tem mais?


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