quinta-feira, 12 de maio de 2016

Nebulosidades auditivas (36)

No festival da Eurovisão de 2004 (na Turquia), comemorando 30 anos sobre a vitória de Waterloo, e 22 anos depois do fim da banda, os ABBA decidiram apresentar um vídeo de 6 minutos, denominado "The Last Video", que passou no intervalo do festival. 

Nesse vídeo, os ABBA aparecem retratados como marionetas, numa ilustração de uma audição falhada perante um excêntrico director de uma companhia discográfica, à época de 1974.
ABBA - The Last Video

Hoje o festival da Eurovisão é um fantasma que se arrasta, mas à época tinha a atenção dos diversos países, numa competição que só seria ultrapassada em popularidade europeia pelos eventos futebolísticos ou olímpicos. Um fenómeno que teve igualmente grande popularidade em Portugal nos anos 1980 foram os Jogos Sem Fronteiras... porque, ao contrário do que acontecia na Eurovisão, onde se classificou quase sempre nos últimos lugares, nesses jogos conseguia ganhar...

Ilustrativo no ano de 1974 foi também o caso da canção italiana "Sí" de Gigliola Cinquetti, que foi a segunda classificada, atrás de Waterloo dos ABBA, mas que foi proibida de passar na RAI, por causa de um referendo sobre o divórcio. Quando ouvimos falar do anacronismo dos tempos pré 25 de Abril, esquecemos que, exceptuando talvez a Inglaterra pós-Beatles, a Europa mantinha muitas tradições antigas, e no caso italiano o divórcio só tinha sido autorizado uns anos antes, e votava-se em Maio de 1974 a revogação dessa legalização do divórcio. Ora o "Si" da canção italiana veio a despropósito, e com medo de ser entendido como "sim" no referendo, a televisão italiana decidiu censurar a canção... algo que o regime de Marcelo Caetano nunca fez - e teria razões para isso com a polémica "Tourada".

No início de 1974, Portugal, Grécia e Espanha estão sob regimes ditatoriais, no final desse ano, esses regimes acabam (Portugal e Grécia) ou iniciavam a transição (Espanha). Se a Grécia entra pela primeira vez na Eurovisão de 1974, também o regime ditatorial dos coronéis acabará nesse ano, por um golpe no Chipre, em Junho de 74, a que se sucede a invasão turca. Assim, se a Eurovisão de 1975 aceitou a Turquia, a Grécia suspendeu a participação nesse ano, e no ano seguinte foi ao contrário... 
A importância mediática do evento levava a tomadas de posição, de cariz político.

Este vídeo dos ABBA, manifestação única depois do seu fim, não deixou de ser estranho.
No início dos anos 1970 a cena discográfica inglesa, começava a dominar a Europa, porque a dinastia "song" inglesa anulou por completo a "chanson" francesa, nos anos que se seguiram. 
Apareciam tendências exóticas, e a controlar a enorme quantidade de grupos, as empresas discográficas dominavam o mercado, com alguns directores ou produtores ainda mais exóticos, e com características despóticas, conforme caricaturado no vídeo dos ABBA, pelo actor Rik Mayall.
A cena é colocada em Estocolmo, mas claramente retrata a tentativa de um produtor sueco (Stig Anderson da Polar Records) de colocar os ABBA na cena internacional, apresentando-os a uma empresa discográfica inglesa ou americana. 
A presença de Cher pode indicar que um exótico director retratado poderia ser Phil Spector, mas haveria outros tantos, igualmente maniacos e despóticos.
Apesar dos ABBA aparecerem aqui como marionetas, e serem rejeitados, é natural que se procure retratar o oposto - isto é, só foram aceites depois de aceitarem funcionar como marionetas das empresas discográficas. Ou seja, todos seriam ali marionetas do sistema... excepto as marionetas.
Parece ainda claro que na sala de espera estaria ainda Martin Lee dos Brotherhood of Man, com a sua guitarra, e outros dois membros, vistos como os "ABBA ingleses", e que ganharam o festival da Eurovisão em 1976. Os Brotherhood of Man eram produzidos por Tony Hiller, um dos mais criativos compositores musicais, que escreveu para mais de 500 artistas... e no produtor sueco vê-se um colar dizendo "Tony", talvez invocando uma dupla representação - de Stig e Tony.

Com raras excepções, o modelo que as empresas discográficas optaram foi o de promover e fazer cair bandas, tendo o seu período de ascensão, apogeu e queda, cerca de 6 anos, invariavelmente. Poderia nem haver relação entre a banda e as canções escritas... afinal as empresas dispunham de todo o material, e actuaram sempre conforme quiseram, usando ou desprezando todo esse manancial criativo.

Parece-me evidente que os ABBA quiseram ali assinalar a sua transição - de artistas a marionetas...

Bom, e porque nem sempre tem que haver ou deixar de haver relações entre as coisas, para terminar este período do cancioneiro, com cravos presentes ou ausentes, deixo um vídeo de Joe Jackson, hoje um artista esquecido. Um vídeo que ilustra a Nova Iorque dos arranha-céus, os sucessos de um compositor, e um compositor de sucesso, enquanto o cravo vermelho serve apenas como fortuita ligação entre uma ilusão e a realidade.
Joe Jackson - Steppin' out (1982)

2 comentários:

  1. e diz bem, esquecido e pouco conhecido pelas novas gerações que julgam ter mto conhecimento sobre música...enfim! Tive o prazer de conhecer o álbum Night and Day, (33 r.pm., ainda guardado no meu baú!) através de um amigo meu! Só alguns "cotas" dos anos oitenta, o reconhecem! Uma pérola!!! Bravo.

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    1. Sim, um dos raros casos que conjugou o piano com a pop.
      E que ritmo consegue ele alcançar nesta!
      É engraçado porque lembrei-me de procurar pela música, e só depois dei conta que o vídeo tinha ali um cravo, mesmo a pedir para entrar na conversa que aqui estava a tratar.
      Muito obrigado pelo comentário!

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