Uma situação razoavelmente ideal é obter uma renda, de preferência que não tenha término, e dê para passar aos descendentes, de forma a acomodar toda a família.
Não estou a falar daquelas rendas que as avós faziam e gostavam de pendurar em cima da TV, ou que passavam aos netos como recordação. Estou mais a falar das rendas que os avôs conseguiam e passavam aos descendentes com desafogo. Num caso mais conhecido, temos uma família com mais de 500 descendentes, que foi vivendo desafogadamente à conta de rendas em cima de um banco, por obra e graça do Espírito Santo. A obra foi sentida na crise financeira recente, e a graça está no sentido de humor aviltante que a piolhagem parasita gosta de exibir sem pudor.
Para entendermos melhor o complexo jogo das rendas, nada melhor que ser ilustrado pelas rendas de bilros. Aliás, o assunto voltou a estar na moda, porque a Câmara de Peniche vai fazendo uns festivais em que os jogos de rendas combinam com vestidos, mais ou menos desafogados:
No caso das vilas piscatórias, os homens faziam redes e as mulheres faziam rendas.
Se o objectivo das redes é facilmente perceptível, imitando o velho esquema aracnídeo da teia, aplicado ao pescado; no caso das rendas, a arte parecia ter utilidade desconhecida, apesar da complexidade que podia envolver. A teia da mulher prendada, não sei se seria suficientemente cativante, mas poderá ter conseguido apanhar os seus peixes.
O assunto das rendas existe desde tempos medievais, e garantia aos senhores das terras prender na sua teia uma boa parte de "peixe fresco", que consistia num imposto aos arrendatários. Como estas coisas passavam hereditariamente, uns habituaram-se a receber, e outros a pagar. A posição de quem recebia as rendas era extremamente confortável... porque basicamente pouco mais faziam que nada, para receber uma parte considerável de tudo o que era produzido na sua terra.
O problema de quem pagava, é que gostaria de estar na posição inversa... e lamentava a malfadada sorte do nascimento o ter colocado na posição de presa e não de predador.
Assim, ao surgirem as primeiras ideias libertadoras da servidão feudal, não seria difícil encontrar peixe que estivesse pelo fim das redes que o prendiam à lógica servil... mas com um ligeiro detalhe de aracnídeo velho - novas teias havia para enlaçar, e mais transparentes que as anteriores!
Por isso, se a nobreza foi sucessivamente perdendo direitos adquiridos, desde há duzentos anos, conseguiu manter as rendas, à conta de outras redes, as redes de contactos, e de uma máquina legisladora especialmente eficaz.
A princípio usou-se o simples esquema da "comenda", e eram vários os comendadores, que mantinham a renda assegurada com esse expediente. Era melhor, porque já nem tinham que defender terrenos, ou ser hábeis na arte da guerra, bastava terem direito à comenda... e foram muitos os comendadores. Os peixinhos cresciam animados com a ideia de que já não precisavam de pagar renda ao senhor feudal, e viam o pagar um imposto ao estado como dever nacional, ou o pagar renda a um senhorio como dever natural de propriedade. Continuavam a pagar ao senhores, mas como o faziam através do estado, ou através de alguma lógica, pareceu-lhes que a vassalagem terminara.
Com a sofisticação legislativa, alguns pormenores foram acertados.
Fugindo sempre à desigualdade inicial, mas tentando dar a entender que se promovia uma igualdade de tratamento, apareceram as "pensões". Fruto de grande pensar, certamente, considerou-se que um velho trabalhador receber de volta descontos, era uma "pensão"... tal como seria uma "pensão" uma comenda dada pelo estado. Assim, tanto passaram a ser vistos como pensionistas os pobres que recebiam um parco valor descontado, como os deputados que recebiam uma graciosa "pensão" por terem passado pela Assembleia.
E lá vem o sentido de humor aviltante, sempre que os pobres reclamassem o aumento de pensões, isso gratificava mais generosamente outros pensionistas, que já não usavam necessariamente o nome de comendadores.
Bom, mas isso, é claro, seria apenas uma fatia pequena do bolo.
A grandes comendas resultariam de vantajosos negócios que privados fizessem com o estado, chegando-se ao ponto de inventar as "parcerias público-privadas", onde o sector público tomou conta do prejuízo, garantindo ao sector privado um lucro quase eterno, sem qualquer risco associado.
Foi assim fácil ver gente sem cheta, receber crédito de bancos públicos, para comprar bancos públicos. Foi fácil ver o estado declarar-se sem dinheiro para uma obra, mas depois financiar um grupo, para executar essa mesma obra, por maior valor, etc... uma paródia saloia.
Fizeram-se assim pontes, auto-estradas, etc... com rendas garantidas para dezenas de anos, e em que os investidores entravam com cacau zero, ou o que é equivalente, com cacau inventado, ou pedido emprestado, até à própria banca do estado. O mesmo se passou com televisões, empresas de telemóveis, etc. Num ápice, o estado foi-se tornando incompetente para tudo, para poder fomentar a passagem para o sector privado, onde basicamente os serviços ficariam a ser os mesmos, mas a preço mais elevado. Elemento essencial para esta mudança, um movimento sindical indecoroso, que pouco mais fez do que arruinar o estado, com exigências ridículas ou extravagantes.
Surge aqui o episódio da tragédia do incêndio de Pedrogão Grande.
Um dos grupos que conseguiu do estado uma choruda renda quase vitalícia foi justamente o ligado ao SIRESP, que se financiara com dinheiro fictício associado ao BPN, que todos tivémos que pagar por maior desconto nos nossos impostos. Como o grupo Galilei, saiu incólume desse incêndio processual, e continuou a operar como pessoa de bem, também o SIRESP manteve todas as características inatas:
- total desadequação ao propósito, falha completa na estratégia do sistema,
- um contrato chorudo para um sistema inoperante,
- cláusulas leoninas que o ilibavam de qualquer responsabilidade, etc, etc...
Ou seja, temos uma renda de bilros mal trabalhada, mas que serviu para dar aspecto de vestido, até que todos vissem que o governo seguia nú.
Como se a pouca vergonha não fosse suficiente, os inteligentes desta tourada, ainda tiveram o desplante aviltante de dizer que o sistema era bom, precisava era de mais financiamento por parte do estado, se pretendesse ser mais eficaz. Visava-se, claro está, usar um expediente de chico-espertice, para arregimentar ainda mais cobres para a banha da cobra.
Vão saindo relatórios, aqui e ali, que para além de mostrarem uma total inoperância da Protecção Civil, e cumplicidade de boa parte dos intervenientes, mostram o completo caos governativo, que nem sequer tinha publicada uma lista oficial de vítimas (argumentando para isso, um inexplicável "segredo de justiça").
O relatório desejado, não é difícil de imaginar, basta que sejam compradas as vontades de o assinar... e dirá o mais conveniente para todos - ou seja, que o incêndio foi excepcional, ninguém poderia prever o que iria ocorrer, todos fizeram o melhor, dentro das possibilidades, e as vítimas ou familiares serão indemnizados. Claro, isto se não forem também multados... como aconteceu com a MEO que exigiu pagamento por cessação do contrato a uma vítima morta.
Para o SIRESP é que a história parece difícil de sair, já que as denúncias de mau funcionamento eram constantes, continuam a ocorrer sistematicamente, e por muito boa vontade que alguns trabalhadores tenham de colmatar as múltiplas deficiências, o problema original é que se tratava apenas de uma renda trabalhada para garantir rendimento à conta de pouco mais que nada.
Como Costa ficou agarrado à contratação do sistema, esperam que não os deixe cair, para não cair com eles... mas por muita falta de vergonha, esquemas de corrupção, benefícios de silêncio, e cumplicidades, que existam, também há outro lado - de oposição, com outros clientes para as mesmas rendas - provavelmente com sistemas inovadores, que garantidamente funcionarão... desde que novas rendas, novas comendas, venham a ser contratadas.
O sistema que funciona é muito simples, com a devida rede de contactos, os contratos são sempre vantajosos, garantindo rendas de qualidade. A rede de contactos encarrega-se de proclamar que os escolhidos, ainda antes de serem escolhidos, são os melhores. Assim, a renda por muito frágil que tenha os seus fios, conta com os múltiplos nós da rede, para se aguentar e proclamar a sua perene saúde... tudo isto funciona, é claro, até ao momento de contacto com a realidade nefasta.
Excelente!! Com o o costumado tom irónico e jogo de palavras. Aposto que Paulo Morais gostaria ler este seu post. Ele e o recentemente falecido Medina Carreira.
ResponderEliminarAb
Obrigado, João.
EliminarSe gostou de ler, é bom. Eu também gostei de escrever, e isso é o essencial. O resto são detalhes, muito mais pequenos do que parecem.
Abç