Um amigo brasileiro disse-me um dia: "não é possível distinguir a corrupção da incompetência".
... onde, depois da introdução dos membros do gang, se explicita a filosofia subjacente:
A frase deixou-me momentaneamente surpreendido, porque em Portugal há o hábito de culpabilizar a corrupção e desculpar a incompetência. Ele simplesmente acrescentou que no Brasil a situação tinha atingido tais proporções, que tinha ficado claro que era impossível distinguir uma coisa da outra.
Os sujeitos que entregam 500 milhões de euros do estado, em troca de um sistema de comunicações de emergência cujas chamadas dependem das chamas (do fogo queimar ou não os postes de ligação), mesmo que se tentem fazer passar por idiotas, nunca poderiam deixar de ser acusados de corrupção.
Mesmo que os idiotas mostrem que não usufruíram de nenhuma compensação, e que nem passaram a ter amigos a emprestar-lhes milhões de euros, um idiota é corrupto ao aceitar tomar decisões contra a mais básica evidência, por muito que invoque pareceres de "peritos", contra o interesse do estado.
Tais idiotas teriam alguma competência, talvez, para ajudar a limpar as matas...
Porém seria injusto isolar o contexto, e não ver o panorama global.
Uma parte do panorama global é mais ou menos ilustrado no filme Goodfellas (1990):
For us to live any other way was nuts. To us, those goody-good people who worked shitty jobs for paychecks and took the subway to work every day and worried about their bills were dead. I mean they were suckers. They had no balls. If we wanted something, we just took it. If anyone complained twice they got hit so bad, believe me, they never complained again.
E é basicamente isto que temos! Os actores de confiança não são muitos... não pela falta de candidatos, mas muito mais pela falta de confiança, e porque o bolo ficaria pequeno sendo dividido com demasiados.
Usando nomes dos "wiseguys", o Nicky Eyes tanto poderia ser secretário de estado da saúde, como depois ser nomeado para administrador de uma construtora civil. O Fat Andy poderia ser CEO de uma empresa nutricionista, depois ministro do desporto, e de seguida regressar à mesma empresa, garantindo pelo meio contratos de alimentação às federações desportivas, etc.
No meio de tal compadrio, e opulência vista de fora, os rapazitos sonham um dia pertencer à pandilha. E entrando, ficam demasiado emocionados com a admissão, para questionar o funcionamento. Se lhes derem um papel para assinar, eles assinam... todos sabem disso, afinal é assim que funciona, e pronto. E os rapazitos contam com apoio, com os pareceres certos, com prémios, se alinharem, porque a malta os apoiará se a coisa der para o torto... mas também devem saber que podem ser sacrificados se a coisa der para o muito torto.
Não se trata aqui de estabelecer quaisquer relações directas com aristocracias, maçonarias, judiarias, máfias ou partidos. O compadrio funciona habitualmente, quando se subentende uma relação de confiança suficientemente grande e estável entre os membros. Por isso, durante muito tempo, a aristocracia que se aproveitava do povo, tentava manter e fortalecer relações familiares, a bem da união do grupo. Quem detinha o poder podia fazer tudo, e os restantes, a populaça, eram apenas vistos como imbecis, alimárias, enredados pela obediência à teia social. O sistema tendia a preservar-se e perpetuar-se, porque as famílias que já estavam instaladas usufruíam da vantagem de deterem o poder, beneficiando por isso da deferência dos restantes. As aparentemente profundas revoluções sociais, em pouco afectaram as relações de poder já existentes, numa lógica "do mudar tudo, para tudo ficar na mesma".
Tal como os sicilianos nos demonstraram, a partir do Séc. XIX, este tipo de controlo local pode ter ramificações globais, instalando-se na imigração que partiu para os EUA durante esse século.
Mas esse é apenas um exemplo, que estabelece um poder paralelo ao estado, sendo visto como ilegal, e desafiando o poder da lei italiana. Num nível mais sofisticado, a actuação não é ilegal, já que seriam os próprios a fazer a lei à sua medida.
Mesmo assim, dificilmente o topo da cadeia de poder termina em alguém conhecido. O poder sendo visível, revela o alvo, preferindo por isso esconder-se em bastidores de influência, e usar actores conhecidos para aparecerem em sua substituição. Ou seja, organizações mais ou menos conhecidas, como a maçonaria, com os seus rituais e fantasias, servem apenas como uma porta de entrada para um mundo menos visível. Não encerram nada de substancialmente misterioso, nas suas tradições anacrónicas. As tradições, os rituais, as cerimónias, servem muito mais para manter uma aura misteriosa que remete a um poder maior, vindo de tempos imemoriais. Celebrações de mascarilhas, que lembram os tempos dos druidas, não servem para reunir grupos operacionais, mas podem servir para fidelizar os membros, e fazer entender que há poderes maiores, que os ultrapassam.
Uma operacionalidade efectiva, nos tempos que correm, assenta muito mais no campo das comunicações, e será entre grupos de hackers que se recrutam operacionais que permitem implementar políticas, e controlar a informação. Será também entre grupos de marketing e publicitários que se procuram definir programações e manipulações de opinião. Uma associação como a maçonaria serve muito mais para juntar diversas competências distintas dentro de um mesmo contexto, dentro de um mesmo grupo, facilitando o contacto operacional.
Bom, e tudo isto para quê? - Basicamente, para definir um grupo com controlo sobre a restante população que pode, dentro de poucas restrições, fazer basicamente tudo o que entender.
Claro que uns utilizam a estrutura para proveito próprio, e esse será o grande aliciante... mas o pretexto será definir o rumo da civilização ocidental, para a manter com predominância global.
Portanto, por um lado, haverá as guerras entre famílias para partilha do bolo, mas o ponto que deixará as cisões mais profundas será na definição do rumo a seguir... coisa que tem gestão simples, no processo de manter tudo como está, ou até em regredir, e que será muito mais complicado na definição de alguma evolução social, como aconteceu desde os Descobrimentos, e em especial na transformação liberal que ocorreu especialmente a partir do Séc. XIX, até à 2ª Guerra Mundial, ao libertar a maioria dos cidadãos da prisão feudal.
O equilíbrio pretendido será manter uma pequena percentagem de predadores para um enorme número de presas. Mas esse sistema só seria estável se a natureza de uns e outros não fosse flexível à mudança. No caso de predadores e presas é a própria natureza que define a condição do corpo, ao passo que a condição da mente sofre mutações apreciáveis, e não há propriamente um problema de estômago em passar de presa a predador, o único estômago que muda é o da disposição moral para perder os escrúpulos.