Chegamos ao fim da tradução da peça de Aristófanes, por acaso com a estreia do filme
Angry Birds em Portugal na próxima semana.
Como numa boa comédia, a revolta dos pássaros contra o domínio dos deuses acaba por ser bem sucedida, graças ao persistente e esclarecido Pistétero. Nesta fase da peça, Euelpide, o seu companheiro de viagem inicial, já foi esquecido. Começando ambos no mesmo caminho, procurando a Poupa, o rei Tereus, amedrontados ambos pelo bico de uma minúscula estrelinha-de-poupa, o percurso divergiu significativamente, graças à ideia de Pistétero de convencer os pássaros a isolar os deuses, construindo a cidade de Nefelococugia.
Nesta última parte, aos deuses não chegam os sacrifícios que os humanos lhes oferecem, e estão praticamente esfomeados, conforme se verá aqui na atitude de Hércules. Hércules fará parte de um trio de embaixadores divinos, suficientemente ridicularizados, que incluía ainda Poseidon e um deus pagão, bárbaro, de nome Tribalo... talvez relacionável com a
triplice entidade celta de Lugo (ver também
Trebaruna).
O sucesso da estratégia de Pistétero não será a confrontação com os deuses, mas sim forçá-los a negociar, apresentando-lhes uma nova ordem universal, onde sairiam a beneficiar.
A ideia não era terminar com o usufruto dos sacrifícios dedicados aos deuses, embora fosse essa a chantagem... Para Pistétero, a elite poderia continuar a beneficiar desse privilégio, ainda mais, desde que aproveitasse um poder executivo que negligenciava - as aves... Com tanta ave rara desejosa de protagonismo, os políticos fariam o papel intermédio entre a oligarquia divina e a força de trabalho humana.
Essa revolução da "passarada" irá mesmo ocorrer especialmente na transição para a Idade Moderna e Contemporânea. A elite aristocrática, distante e pouco visível ou acessível pela população, deixaria de comandar os destinos directamente. As aves políticas, formariam uma parede "democrática", entre a população e o poder. A parte do poder política, sendo visível e acessível, permitiria à oligarquia não ser responsabilizada pelos sucessos ou fracassos da governação de ministros eleitos.
Os benefícios do comércio, do mundo capitalizado, representado na peça pelos sacrifícios que os humanos ofereciam aos deuses... ou seja, hoje em dia - os impostos, seriam aumentados se os humanos trabalhassem mais, motivados pelo poder próximo das aves políticas.
Portanto, ainda que seja uma possibilidade remota que Aristófanes pretendesse caracterizar isso, pareceu-lhe haver nexo nessa vantagem divina de aceitarem a intermediação das aves no exercício do seu poder. Nisso, a situação foi muito semelhante ao que se passou com a ascensão da maçonaria, e a implantação de regimes democráticos no Séc. XIX e XX. A aristocracia não desapareceu, continuou a beneficiar de sacrifícios de trabalho alheio, mas passou a ser mais tolerada, pela ideia de que a responsabilidade da governação tinha passado para as aves raras da política.
A revolução francesa mostrou bem como o bloqueio comercial imposto à França, provocaria o colapso da elite reinante, ao mesmo tempo que mostrou como a população humana sem uma ordem elitista, nem que fosse de bastidores, perderia os referenciais de orientação e ponderação.
Mesmo um centrar da chave do poder na jovem Basileia, acaba por ser simbolicamente apropriado, já que a juventude seria mais facilmente conduzida pelo poder de sedução colocado na nova geração feminina. Conquistado o feminino pela moda, a atracção masculina seguiria depois o padrão sem esforço.
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As Aves
(de Aristófanes)
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Coro (cantando): Na terra dos Monopodes há um pântano, onde Sócrates, que nunca se lava, invoca as almas dos homens. Pisandro também aí foi, para ver a sua alma, que ali tinha deixado quando era vivo. Como vítima do sacrifício escolheu um camelo, em vez de um carneiro, e quando o degolou afastou-se, como fizera Ulisses. Nesse momento Caerefon veio do inferno, na forma de um morcego, para beber o sangue do camelo.
(Poseidon entra, acompanhado por Herácles e Tribalo)
Poseidon: Eis a cidade de Nefelococugia, onde chegamos como embaixadores.
(Falando para Tribalo):
- Ei, tu! Que fazes tu?
- Estás a usar a capa pela esquerda? Não a atiras para a direita?
- Que hábito é esse, de Laespodias? [general ateniense que fazia o mesmo, para disfarçar o mal numa perna]
- Mal afortunado diabo!
- Oh, democracia, onde nos levas?
- Será possível que os deuses tenham eleito este representante?
Tribalo: Cala-te e acalma-te!
Poseidon: Malvado selvagem, és de longe o mais bárbaro de todos os deuses!
- Diz-me, Herácles, o que vamos fazer?
Herácles: Já te disse! Quero estrangular o fulano que se atreveu a bloquear-nos com um muro...
Poseidon: Mas, meu caro amigo, somos enviados de paz!
Herácles: Mais uma razão para o querer estrangular...
(Pistétero sai da moita, seguido de escravos, que transportam utensílios de cozinha. Um deles monta uma mesa, onde coloca galináceos para assar)
Pistétero (para os escravos): Passa-me o ralador de queijo. Traz-me o sílfio para o molho. Passa-me o queijo, e olha pelas brasas.
Herácles: Mortal! Somos três deuses, quem vos saúda.
Pistétero: Espera um pouco, até que termine o meu molho de sílfio.
Herácles: Que carnes são essas?
Pistétero : São aves que foram punidas com a morte, por atacarem aves amigas de humanos.
Herácles: E tu preparas o molho, em vez de nos atenderes?
Pistétero: Ah! Olá Hércules. Bem vindo, bem vindo. O que se passa?
Poseidon: Viémos, como embaixadores dos deuses, para negociar o assunto da guerra.
Escravo: Falta óleo no frasco.
Pistétero: No entanto, é preciso assegurar que as aves estejam bem marinadas.
Herácles: Não retiramos desta guerra nenhum lucro. Se ficassem amigos dos deuses, prometemos que teriam sempre água pura da chuva nas vossas piscinas, e o mais agradável dos climas temperados. Para estes favores temos poderes plenipotenciários.
Pistétero: Nunca fomos agressores, e mesmo agora estamos dispostos para a paz, tal como vós, desde que concordem com uma condição de equidade. Ou seja, que Zeus devolva o seu ceptro às aves. Se apenas isto for concedido, convido os embaixadores para jantar.
Herácles: Por mim, está óptimo. Voto pela paz!
Poseidon: Desgraçado! Não passas de um tonto glutão. Pretendes destronar o teu próprio pai?
Pistétero : Nada mais errado. Os deuses serão muito mais poderosos se forem as aves a governar a Terra. De momento, os mortais estão escondidos por baixo das nuvens, escapam à vossa observação, e cometem perjúrio em vosso nome; mas se tivessem os pássaros como aliados, qualquer homem, depois de ter jurado pelo Corvo e por Zeus, se falhasse a esse juramento, o corvo mergulharia contra si, e sem dar conta perderia um olho.
Poseidon: Bem pensado... por Poseidon!
Herácles: Também acho!
Pistétero (para Tribalo): E qual é a tua opinião?
Tribalo: Nabaisatreu.
Pistétero: Estão a ver? Ele também concorda! Mas, ouçam, há mais em que vos podemos servir. Se um homem fazer votos de sacrificar a um deus, e procrastina, pretendendo que "os deuses podem esperar", faltando à sua palavra, puniremos essa afronta.
Poseidon: Ah, sim?... e de que forma?
Pistétero: Quando o homem estiver a contar o seu dinheiro, ou sentado num banho, um milhafre tratará de lhe subtrair em moedas ou em roupa, o preço de duas ovelhas, levando-o aos deuses.
Herácles: Voto para que lhes seja restituído o ceptro!
Poseidon: Pergunta ao Tribalo!
Herácles: Tribalo, o que pensas de... ser insultado?
Tribalo: Saunaca Bactaricrousa.
Herácles: Ele diz que falo profundamente bem!
Poseidon: Bom, se são ambos da mesma opinião, não serei eu a contrariar.
Herácles: Muito bem. Estamos de acordo quanto ao ceptro.
Pistétero: Ah! Quase que me esquecia da outra condição... deixarei Hera a Zeus, mas apenas se a jovem Basileia me for acordada em casamento.
Poseidon: Vejo que não tens qualquer interesse na paz. Retornemos ao Olimpo.
Pistétero: Importa-me pouco... Cozinheiro, é preciso uma boa calda!
Herácles: Que ridículo... Onde vais Poseidon? Alguém faria uma guerra por uma mulher?
Poseidon: Que mais há aqui a fazer?
Herácles: Que mais? Ora, concluir a paz!
Poseidon: Oh! Desgraçado... Não vês que és sempre enganado? Estás a arruínar-te. Porque se Zeus morresse, depois de doar o seu império, ficarias na pobreza... afinal, tu és o herdeiro dele.
Pistétero: Oh, por todos os deuses! Vê como ele te tenta convencer! Vem cá, para te dar uma palavra. O teu tio tenta aproveitar-se de ti, meu caro amigo. A lei não permitirá que fiques nem com uma moeda de herança paternal, pois és bastardo e não filho legítimo.
Herácles: Sou um bastardo? Que é que estás a dizer?
Pistétero: Claro. Afinal és filho de uma estrangeira. E como achas que Atena é considerada sua única herdeira, ela uma filha... se existissem filhos legítimos?
Herácles: Mas, e se o meu pai me fizesse seu herdeiro, no seu leito de morte, mesmo sendo bastardo?
Pistétero: A lei proíbe-o, e o mesmo Poseidon seria o primeiro a reclamar a sua herança, em virtude de ser seu legítimo irmão. Ouve, assim é a Lei de Sólon: "Um bastardo não herdará, se existirem filhos legítimos; e não havendo filhos legítimos, a herança passa para o parente mais próximo"!
Herácles: Então, e eu não ficaria com nada da sua fortuna pessoal?
Pistétero: Absolutamente nada! Mas diz-me, fez o teu pai entrar o teu nome nos registos da irmandade (fratria)?
Herácles: Não, e há muito que fiquei surpreendido com essa omissão.
Pistétero: Porque ameaças o céu com os teus punhos? Queres lutar? Então, fica do meu lado, farei de ti rei, e desfrutarás do leite e mel das aves.
Herácles: A sua condição adicional parece-me justa - a donzela concedo-a a ti.
Pistétero: Que dizes tu?
Poseidon: Oponho-me, é claro.
Pistétero: Então tudo será decidido pelo Tribalo. Que dizes tu?
Tribalo: Bela donzela Basilina, a dou minha!
Herácles: Ele diz que concorda.
Poseidon: Por Zeus, ele não diz nada disso, parece que balbuciou... andorinha.
Pistétero: Certo. Se disse andorinha, então deve ser entregue às aves.
Poseidon (resignado): Está bem, vós os dois acertai o assunto; façam a paz se é o que querem; eu manterei a boca fechada.
Herácles: Estou com vontade de te conceder tudo o que quiseres! Mas vem ao céu connosco, para receberes Basileia e o legado celestial.
Pistétero: Estes pássaros foram mortos bem a jeito de serem servidos numa boda de núpcias.
Herácles: Ide-vos. Se quiseres, eu cuidarei que a carne asse bem.
Poseidon: Assar a carne? Isso parecem-me propósitos de um glutão. Tu vens connosco!
Herácles: Hmm? Podia ter-me tratado bem desta fome.
Pistétero: Tragam-me uma bela e magnífica túnica nupcial.
(A túnica é-lhe entregue, e ele parte com os três deuses)
Coro (cantando):
Em Phanae [
Chios],
próximo da clepsidra, habita um povo sem fé ou lei, os Englotogastros [ventríloquos]
que semeiam e colhem as vinhas e os figos com a língua. Pertencem a uma bárbara raça, e entre eles encontram-se os Filipos, os Gorgias. E foram os ventriloquos Filipos que espalharam na Ática o costume de nos sacrifícios cortar a língua em pedacinhos.
(Entra um mensageiro)
Mensageiro (em tom trágico): Ó vós, cuja ilimitada felicidade não consigo expressar por palavras, raça triplamente afortunada de aves aladas, recebam o vosso rei nos vossos abençoados lares. Mais brilhante que a mais brilhante estrela que ilumina a Terra, ele está chegando ao seu brilhante palácio dourado; o próprio Sol não brilha com maior glória.
Está entrando com a noiva a seu lado, cuja beleza nenhuma língua humana pode expressar. Na sua mão brande o raio, o traço alado de Zeus. Perfumes de doçura indizível invadem os espaços etéreos. É um glorioso espectáculo ver as nuvens de incenso que se elevam como espirais de fumo.
Mas ei-lo! Que a boca sagrada da Musa divina profira os cantos apropriados.
(Pistétero entra com uma coroa na cabeça, acompanhado por Basileia)
Coro (cantando): Para trás, para a direita, para a esquerda, avançar! Voem em torno deste feliz mortal, cuja Fortuna muniu de todas as suas bençãos. Oh! Que graça, que beleza! Oh! Que casamento mais auspicioso para a nossa cidade. Toda a honra é deste homem.
É através dele que as aves são chamadas aos mais gloriosos destinos. Que as vossas músicas e hinos nupciais o saúdem com a sua Basileia. Foi no meio de iguais festividades que as Moiras uniram Hera a Zeus que governa os deuses do cume do seu trono inacessível no Olimpo.
Oh! Hímen. Oh! Hímeneu. Atrás, o rosáceo Eros, de asas de ouro, segurava as renas e guiava a carruagem. Oh! Hímen. Oh! Hímeneu.
Pistétero: Estou encantado com as vossas músicas e hinos, aplaudo os versos. Agora celebrem o trovão que abala a terra, o relâmpago flamejante de Zeus e o seu terrível raio.
Coro (cantando) Oh! Clarão dourado do relâmpago! Oh! Divinos fachos de chamas, que Zeus lançava. Oh! Sim, trovões rolantes que traziam a chuva! É pela ordem do nosso rei que agora abanam a Terra!
Oh! Hímen. Oh! Himeneu. É através de ti que ele comanda o universo por Basileia, que roubou a Zeus, e que agora tem a seu lado. Oh! Hímen. Oh! Himeneu.
Pistétero (cantando) Que todas as tribos aladas dos nossos concidadãos sigam os noivos até ao palácio de Zeus, e até ao leito nupcial.
(para Basileia): Estende as tuas mãos, querida esposa. Segura-te nas minhas asas e vamos dançar. Irei erguer-te e levar-te pelo ar.
(Pistétero e Basileia saem dançando, o Coro segue-os.)
Coro (cantando)
Alalale! Io, Paion! Viva, o justo vencedor! Oh! O maior de todos os deuses!
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