Tendo Prometeu sido condenado por Zeus a sofrer a repetida pena de ver os seus fígados comidos por uma águia, é apropriado Aristófanes ter trazido o titã à peça. Prometeu esquece a ave instrumental da tortura, mas não esquece o mandante, revelando a Pistétero a forma de retirar o poder a Zeus... que consistia no casamento com a donzela Basileia (neste caso sem qualquer relação com a cidade suiça).
Por revelar o segredo do fogo aos humanos, Prometeu é agrilhoado e condenado a ver uma águia comer-lhe repetidamente o fígado. |
Esta peça de Aristófanes, pela sua elevada carga de noções de ética e justiça, chegou a ser sugerida como uma possível influência para os redactores do Novo Testamento, pelo historiador Arnold Toynbee. Segundo a wikipedia, Toynbee comparou o papel de Pistétero com o de Jesus, a cidade Nefelococugia ao "reino dos céus", e a identificação do símbolo da pomba com o Espírito Santo, sendo na peça a pomba associada a Afrodite Urania, no conceito de amor espiritual.
Bom, mas se tudo isto parece exagerado, também não deixou de ocorrer a representação de anjos como seres alados, mas onde as asas devem ser entendidas como uma natural propriedade dos habitantes do "reino dos céus".
Também em certa medida, podemos ver na confrontação dos personagens que desfilam perante Pistétero, um modelo de forma para servir a crítica moral usada nos Autos (ou Actos) de Gil Vicente.
Nesta parte desfilam também personagens-tipo, criticados pelas suas acções ou profissões. E se Aristófanes bane um poeta oportunista, invoca uma surpreendente remissão de um parricida, enquanto assinala "delatores" como outro exemplo de caso perdido. A implantação de um sistema de justiça trouxera a Atenas uma casta de parasitas - os "delatores", elementos prontos a explorar os pontos fracos da sociedade em benefício próprio, abdicando de qualquer consciência moral.
As virtudes de um sistema democrático não estão propriamente no sistema, mas sim na moral de quem o usa. Qualquer sistema político tem fraquezas que podem ser exploradas por oportunistas de ocasião, em benefício próprio... na habitual diferença entre protagonistas de ilegalidade - os criminosos, e os exploradores imorais da legalidade - os pulhas.
O pulha explora a diferença entre ilegalidade e imoralidade, para poder tirar partido da sua imoralidade dentro da legalidade... e o exemplo do "delator" é usado por Aristófanes para condenar essa prática, essa arte de simples pulhice, que já passava com sucesso financeiro de pais para filhos.
O aspecto mais flagrante de cinismo social, que Aristófanes não deixa de criticar oportunamente, é do uso e abuso dos escravos pela sociedade ateniense... caso singular que é também ilustrado noutra sua peça, num diálogo de Praxágoras:
- Quero que todos tenham parte do todo, e toda a propriedade seja comum, não haverá mais ricos e pobres (etc ...)- Ah... mas, nesse caso, quem cavará o solo?- Ora, os escravos!
Assim, Aristófanes apesar de elevar Pistétero à condição de herói da sua comédia, começa aqui por ilustrar que, para os escravos, a situação não mudava muito com a mudança de poder que se estava a processar... também o papel reservado para os servos não mudava muito na escritura do Novo Testamento, continuavam a dever obediência ao seu senhor, tal como alegoricamente os fiéis deviam obediência a Jesus. Também a Igreja de Roma iria proclamar uma igualdade espiritual humana, mas quem continuaria a cavar o solo seriam os servos.
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As Aves
(de Aristófanes)
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Coro (cantando): Em breve esta cidade terá uma multidão de homens. A Fortuna favorece-nos e os homens sentem amor pela nossa cidade.
Pistétero (para o escravo Manes): Venha, apresse-se a trazer essa cesta cheia de asas.
Coro (cantando): Não irá o homem encontrar aqui tudo o que pode agradá-lo? Sabedoria, amor, as garças da Graças divinas, o doce rosto da paz?
Pistétero (Manes entra com outra cesta): Oh! Servo preguiçoso, não queres apressar-te?
Coro (cantando): Que a cesta seja trazida rapidamente. Vá, bate-lhe como eu faço, mete-lhe um pouco de vida... ele é tão preguiçoso como um burro.
Pistétero: Sim, Manes é um grande preguiçoso.
Coro (cantando): Ponha as asas em ordem; divida em três partes de acordo com as aves de onde vieram; as aves musicais, as proféticas e as aquáticas; de seguida, deve cuidar em distribuí-las aos homens, de acordo com a personagem escolhida.
Pistétero (Manes entra com nova cesta): Oh! Por todos os falcões, não suporto ver-te tão lento e preguiçoso. (Bate em Manes, que foge).
Pistétero (Manes entra com nova cesta): Oh! Por todos os falcões, não suporto ver-te tão lento e preguiçoso. (Bate em Manes, que foge).
(Chega um jovem Parricida)
Parricída (cantando): Oh! Poderoso! Tornar-me-ei numa águia, que voa pelos céus! Oh! Poderoso! Voarei por cima das ondas azuis do grande mar!
Pistétero: Ah! Parece que a notícia era verdadeira, eis alguém que chega falando de asas.
Parricída: Nada é mais encantador do que voar... sou um ornitomaníaco, e voarei sob sua direcção, porque quero viver convosco e obedecer a vossas leis.
Pistétero: Que leis? As aves têm muitas leis...
Parricída: Todas elas... mas a que mais me agrada é que, entre as aves é considerado bom bicar e estrangular o próprio pai.
Pistétero: Sim, por Zeus! O que se atreve a atacar seu pai, enquanto pintainho, é um sujeito corajoso.
Parricída: Certo, logo quero morar aqui, pois quero estrangular o meu pai e herdar sua fortuna.
Pistétero: Mas temos também uma lei antiga escrita nas colunas das cegonhas, que funciona assim: "Se o pai cegonha criou suas crias e as ensinou a voar, as jovens devem em troca alimentá-lo."
Parricída (petulantemente): Fiz esta distância e sou obrigado a alimentar o meu pai?!
Pistétero: Não, não, jovem amigo! Já que veio até nós com tal disposição, dar-lhe-ei estas asas negras, como se fosse um pássaro órfão. Além disso, ouça alguns bons conselhos, que recebi na infância. Não bata no seu pai, mas tome estas asas numa mão e estas esporas na outra; imagine que tem uma crista de galo, monte guarda e lute. Viva pelo seu soldo e respeite a vida do seu pai. Você é um valente! Muito bem então... voe para a Trácia e lute.
Parricída: Por Dionísio, tem razão! Seguirei então seu conselho.Pistétero: Por Zeus, agirá sabiamente.
(O Parricida parte, e chega o poeta ditirâmbico Cinésias)
Cinésias (cantando): Descolo para o Olimpo nas minhas asas ligeiras, e no meu voo percorro, um após outro, os mil caminhos da melodia...
Pistétero: Este companheiro precisará de um carregamento completo de asas!
Cinésias (cantando): De espírito e corpo intrépido, procuro um novo folgo.
Pistétero: Nós te saudamos, Cinésias, homem-tília! Por que veio aqui, coxeando?
Cinésias (cantando): Quero ser um pássaro, um rouxinol melodioso.
Pistétero: Chega de cantorias, diga-me ao que vem?!
Cinésias (cantando): Com as asas que me der, quero subir além do ar, e aí inspirar novas canções das nuvens vaporosas e nevosas.
Pistétero: Inspirar músicas das nuvens?
Cinésias: É delas que depende a nossa arte. Os ditirambos são aéreos, tenebrosos, obscuramente densos, alados. Escuta, e entenderás rapidamente.
Pistétero: Não, certamente que eu não!
Cinésias: Sim, tu, por Hermes... (começa a cantar) "Viajarei, sob a forma de ave no teu império alado, fendendo o éter com o longo pescoço..."
Pistétero: Pare! Já chega.
Cinésias: "... lançado em voo sobre o mar, levado pelo sopro dos ventos..."
Pistétero: Por Zeus, devo meter termo a este sopro!
(Pistétero tenta calar Cinesias, enfiando-lhe um par de asas pela boca dentro)
Cinésias (fugindo): "... agora correndo ao longo dos trilhos de Notus, me aproximando do Bóreas, fendendo os resíduos do éter." Ah! Meu velho, você teve uma brilhante ideia.
Pistétero: O quê? Não estás contente de ir fendendo o ar?
Cinésias: Tratais mal um poeta ditirâmbico, por quem as tribos disputam o estilo.
Pistétero: Ficarias connosco, qual Leotropides, formando um coro de aves para a tribo Cecropida?
(Cinésias parte e chega um Delator profissional, um sicofanta)
Delator: Que aves indigentes são estas, com penas caídas? - uma visão tão lamentável. Responda-me, andorinha com as asas manchadas.
Pistétero: Oh, não! Isto já é uma invasão regular que nos ameaça - surge outro a cantarolar.
Delator: Andorinha com as asas manchadas, mais uma vez te interpelo.
Pistétero: Deve estar a falar com o seu manto, com nostalgia das andorinhas.
Delator: Onde está aquele que distribui asas aos que chegam?
Pistétero: Aqui estou, mas deve informar-me dos seus propósitos!
Delator: Não faça perguntas. Quero as asas, e as asas eu devo ter.
Pistétero: Quererá voar direito a Pellene?
Delator: Eu? Ora essa, sou um acusador das ilhas, um delator...
Pistétero: Ah! Uma bela profissão!
Delator: ... um criador de acções judiciais. Daí a minha necessidade de asas, para sondar nas cidades, e arrastá-las para processos na justiça.
Pistétero: Farias isso melhor, se tivesses asas?
Delator: Não, mas assim já não temeria ladrões e piratas. Poderia regressar com os grous, trazendo como lastro uma grande quantidade de processos.
Pistétero: Um jovem como tu, ganha a vida denunciando estranhos?
Delator: Ora, e por que não? Eu não sei cavar!
Pistétero: Por Zeus, mas há formas honestas de ganhar a vida na sua idade, sem velhacaria!
Delator: Meu caro, estou-lhe a pedir asas e não palavras.
Pistétero: Apenas as minhas palavras lhe poderão dar asas!
Delator: E como, com palavras, dais vós asas?
Pistétero: As palavras dão asas a qualquer um.
Delator: A qualquer um?
Pistétero: Não saberás tu o que os jovens ouvem frequentemente dos pais nos barbeiros? Um diz: "é espantoso como ao meu filho os discursos de Diitrephes deram asas para a equitação", outro diz: "o meu filho voa na poesia trágica, com as asas da imaginação".
Delator: Então os discursos dão asas?
Pistétero: Sem dúvida, as palavras dão asas à mente, e fazem um homem elevar-se aos Céus. E assim, espero que este discurso te eleve para uma profissão menos degradante.
Delator: Mas... não quero!
Pistétero: Que farás então?
Delator: Não vou renunciar à minha criação. De pais para filhos, sempre fomos delatores. Dai-me pois asas ligeiras, de falcão ou francelho, para que possa incriminar estrangeiros, sustentar aqui a acusação contra eles, quase ao mesmo tempo que lá regresso.
Pistétero: Entendo. Pretendes que estrangeiros sejam aqui condenados, ainda antes de chegarem?
Delator: Isso mesmo!
Pistétero: Pois... e enquanto ele se encaminha para cá, tu voas para lá, despojando-o de terras e bens.
Delator: Entendeste bem! Andarei cá e lá, rodopiando como um pião.
Pistétero: Sim, apanhei a ideia a girar. Espere, tenho aqui umas "Asas de Córcira" [designação de um tipo de chicote]... onde as quer colocar?
Pistétero: Sim, apanhei a ideia a girar. Espere, tenho aqui umas "Asas de Córcira" [designação de um tipo de chicote]... onde as quer colocar?
Delator: Oh! Desgraçado... mas, isso é um chicote!
Pistétero: Não, não! Asseguro-te que são asas que te fazem rodopiar.
Delator (chicoteado por Pistétero): Oh! Desgraçado estou eu...
Pistétero (enquanto o delator foge): Voe daqui para fora, miserável, cobarde, digno de mil mortes. Sentirás ardente a chama das falsidades a que chamas justiça. (Falando aos escravos): Chega, vamos recolher as nossas asas e sair daqui.
Coro (cantando): Nos voos etéreos vemos coisas novas, estranhas, extraordinárias além de qualquer crença. Há uma árvore chamada Cleonymus de espécie desconhecida. Não tem coração, não serve para nada, tirando sua cobardia e altura. Na primavera floresce em calúnias, e no outono, em vez de folhas, deixa cair escudos. [Cleonymus, general ateniense, deixou cair o escudo em batalha e fugiu]
Longe, na região tenebrosa, há um país onde sem lanternas, onde homens e heróis vivem e comem juntos, excepto à noite... porque seria um mau encontro. Se qualquer mortal encontrasse o herói Orestes, seria logo despido e coberto de pancada da cabeça aos pés.
Prometeu: Que desgraça a minha! Esperemos que Zeus não me veja. Onde está Pistétero?
Pistétero: Oh! Que é isto? Um homem mascarado?
Prometeu: Vê algum deus atrás de mim?
Pistétero: Não, nenhum. Ora, mas quem és tu?
Longe, na região tenebrosa, há um país onde sem lanternas, onde homens e heróis vivem e comem juntos, excepto à noite... porque seria um mau encontro. Se qualquer mortal encontrasse o herói Orestes, seria logo despido e coberto de pancada da cabeça aos pés.
(O titã Prometeu entra mascarado, tentando esconder sua identidade)
Prometeu: Que desgraça a minha! Esperemos que Zeus não me veja. Onde está Pistétero?
Pistétero: Oh! Que é isto? Um homem mascarado?
Prometeu: Vê algum deus atrás de mim?
Pistétero: Não, nenhum. Ora, mas quem és tu?
Prometeu: Por favor, que tempo é?
Pistétero: O tempo? Cronologicamente... pouco mais que meio-dia. Quem é você?
Pistétero: Ah! Desde quando?
Prometeu: Desde que fundaste esta cidade no ar. Não há mais sacrifícios para os deuses, até porque o fumo das vítimas não chega até nós. Não chega nem a mais pequena oferenda! Jejuamos, como se estivéssemos nas Tesmoforias, pela ausência de sacrifícios. Os deuses bárbaros, morrendo de fome, berram como Ilírios, e ameaçam descer sobre Zeus, se ele não reabrir os mercados onde se vendem pedaços de vítimas.
Pistétero: O tempo? Cronologicamente... pouco mais que meio-dia. Quem é você?
Prometeu: É hora do retorno dos bois, ao cair do dia, ou mais tarde?
Pistétero: Como te vejo horrorizado!
Pistétero: Como te vejo horrorizado!
Prometeu: Como está o tempo? Zeus, está juntando ou dispersando as nuvens?
Pistétero: Guarda-te, vais gemer.
Prometeu: Está bem, vou levantar a minha máscara.
Pistétero: Oh! Meu caro Prometeu!
Pistétero: Guarda-te, vais gemer.
Prometeu: Está bem, vou levantar a minha máscara.
Pistétero: Oh! Meu caro Prometeu!
Prometeu: Chiu... fala mais baixo!
Pistétero: Porquê? Qual é o problema, Prometeu?
Pistétero: Porquê? Qual é o problema, Prometeu?
Prometeu: Chhh... Não me trate pelo nome! Será a minha ruína, se Zeus me vê aqui! Mas se quiser saber como andam as coisas lá em cima, abra esta sombrinha, para que os deuses não me vejam.
Pistétero: Ah! Sim, posso reconhecer Prometeu nesse truque astuto. Vem para debaixo da sombrinha e fala sem rodeios.
Prometeu: Então, escute!
Pistétero: Estou a ouvir, prossiga!
Prometeu: Zeus está feito!Pistétero: Ah! Sim, posso reconhecer Prometeu nesse truque astuto. Vem para debaixo da sombrinha e fala sem rodeios.
Prometeu: Então, escute!
Pistétero: Estou a ouvir, prossiga!
Pistétero: Ah! Desde quando?
Prometeu: Desde que fundaste esta cidade no ar. Não há mais sacrifícios para os deuses, até porque o fumo das vítimas não chega até nós. Não chega nem a mais pequena oferenda! Jejuamos, como se estivéssemos nas Tesmoforias, pela ausência de sacrifícios. Os deuses bárbaros, morrendo de fome, berram como Ilírios, e ameaçam descer sobre Zeus, se ele não reabrir os mercados onde se vendem pedaços de vítimas.
Pistétero: O quê? Há portanto, outros deuses, que habitam acima de vós?
Prometeu: Se não houvesse deuses bárbaros, quem seria o patrono do cário Execestides?
Pistétero: E como se chamam esses deuses bárbaros?
Prometeu: O seu nome? São os Tribálios!
Pistétero: Ah! Sim, faz sentido... a palavra "tribulações" deve vir daí!
Prometeu: É provável, mas uma coisa posso dizer seguramente - vão chegar aqui enviados de Zeus e dos Tribálios, para negociar a paz. Não consintam nada, se Zeus não devolver o ceptro às Aves, e se não te der Basileia como esposa.
Pistétero: Quem é que é Basileia?
Prometeu: Uma esbelta donzela que fabrica os raios de Zeus. Todas as coisas vêm dela - prudência, equidade, sabedoria, a virtude, a frota marítima, calúnias, o tesouro público e os triobolus...
Pistétero: Ela administra tudo isso para ele?
Prometeu: É como te digo, se tu a conseguires, tens tudo. Foi por isso que vim aqui, com a finalidade de te prevenir, pois é desde tempos imemoriais que velo pelo bem humano.
Pistétero: Oh, sim! É só graças a ti, entre os deuses, que podemos grelhar a nossa carne.
Prometeu: Eu odeio os deuses, como bem sabes!
Pistétero: Sim, por Zeus, foste sempre seu inimigo!
Pistétero: Sim, por Zeus, foste sempre seu inimigo!
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