sexta-feira, 30 de março de 2018

Nebulosidades auditivas (58)

Nobody does it better, makes me feel sad for the rest...

Carly Simon, uma das minhas vozes preferidas, começava assim o tema do filme "The spy who loved me", da saga James Bond, aqui com Roger Moore, e Barbara Bach como "Bond girl" (e que depois se casaria com Ringo Starr).  
Carly Simon - Nobody does it better (James Bond - "The spy who loved me", 1977)

É interessante que no final desta introdução, M diz "Send me an agent, AAA"...
Fala-se bastante em AAA, enquanto rating de crédito de agências financeiras, e durante a "crise" também em Eurobonds (European Bonds) como possível solução. O nome Bond também significa "obrigação" e as três letras são um sistema da sua classificação. 
Assim, uma alusão a AAA e Bond, é uma piada subtil, certamente propositada. 
Note-se que tal como 007 seria o código de James Bond, aqui AAA seria o código de Miss Moneypenny (nomenclatura igualmente económica).

Estes filmes faziam especial sentido no tempo da Guerra Fria, em que o espião de Sua Magestade fazia melhor que os espiões americanos, contra russos e outros "malvados", de serviço.

A ideia de ver os russos no papel de "inimigos de serviço", deixou de estar na moda, até ao momento em que Vladimir Putin arranjou uma esquema "democrático" de se manter indefinidamente no poder.
Putin, com 18 anos no poder, distancia-se assim de Angela Merkel, apenas com 13 anos consecutivos.
Mesmo assim, Putin teve que usar Medvedev para alternar como presidente, enquanto o cargo de chanceler alemão não tem limitações no tempo. 
Enquanto isso, pelos Estados Unidos passaram 4 presidentes (Clinton, Bush, Obama, Trump), e pelo Reino Unido 4 primeiros ministros (Blair, Brown, Cameron, May)... bom mas a recordista de tempo no cargo é claramente Isabel II, com 66 anos enquanto rainha.

Isto, a propósito da história absurdo-caricata de relações internacionais, envolvendo uma tentativa de assassinato do ex-espião Sergei Skripal, e que afectou também a sua filha.
Quando se tratou do envenenamento de Litvinenko, com Polónio 210, no ano de 2006, a situação também teve um grande mediatismo internacional, mas nada que se assemelhe à desproporcionada escalada global que agora envolveu expulsão de diplomatas, pela maior parte dos países europeus:

Países que expulsaram diplomatas russos devido ao caso Skripal (info)

Esta situação começa por ser caricata, porque nenhum faleceu, e a filha parece estar a recuperar bem.
Não tem nenhum precedente.
Ou seja, nunca em simultâneo tantos países decidiram expulsar diplomatas.

Que o Reino Unido tomasse uma atitude, seria expectável, mas enfim... tudo fraquíssimo, pois não exibiu provas publicamente. Que isso levasse à expulsão de diplomatas russos do UK, enfim...
Que, por arrasto, Trump quisesse assumir uma posição anti-Rússia, enfim... percebe-se porque tinha sido acusado de ganhar as eleições com expedientes informáticos russos... whatever!
Agora que, sabe-se lá porquê, mais 20 países tenham querido fazer o mesmo, só faz sentido se estivermos a jogar o jogo "Follow the leader".
Das múltiplas acusações que têm vindo a ser lançadas contra a Rússia, e houve muitas, especialmente desde a anexação da Crimeia... podiam ter escolhido muitos pretextos, mas este pseudo-envolvimento numa tentativa de assassinato, não faz sentido.

Skripal foi acusado de traição e preso em 2006, justamente no ano em Litvinenko morreu.
Em 2010 a Rússia fez uma troca de prisioneiros espiões com os EUA e UK, pelo que Skripal não teria grande interesse para os russos (nem deveria ter para os britânicos, que não o vigiavam).
Tendo isto acontecido na semana anterior à reeleição de Putin, tal acto só o desfavoreceria... e os eventuais interessados nisso seriam opositores internos ou externos.
Com "provas" de ligação à Rússia, que fazem lembrar as provas de armas de destruição massiva no Iraque, ou seja - que são invocadas mas não são conhecidas... a posição inglesa tornou-se aberrante, mas não tão aberrante quanto a de todos os carneirinhos que a seguiram. 

Acresce a toda esta situação as acusações de que o Facebook permite usar informação pessoal dos utilizadores... e parece que estamos a viver num mundo de crianças, que acreditavam no Pai Natal, e que não sabiam que podem ser manipuladas ou enganadas. 
Provavelmente as acusações à Rússia de interferências no Brexit, na eleição de Trump, nas eleições da Catalunha, e em qualquer outra em que os resultados sejam diferentes dos esperados, resumem-se a essa notável descoberta sobre o Facebook.

As coisas chegaram a um ponto em que já faltam os bons argumentistas para a narrativa dos media internacionais, sendo vendidas agora histórias da carochinha, sem sentido nenhum.

Em fim, enfim, outro vídeo da Carly Simon, apropriadamente com uma letra infantil Itsy bitsy spider:

Carly Simon (1987): Coming Around Again / Itsy bitsy spider 
(concerto em Martha's Vineyard... a ilha "chique", onde tinha casa de férias)

segunda-feira, 26 de março de 2018

Madrid, é cada vez menos Espanha

Madrid, estando com saudades de ver os catalães na rua em protesto, conseguiu prender Puigdemont ontem, por meio da polícia alemã, quando o "presidente catalão" regressava à Bélgica, onde estava exilado.


Madrid, é cada vez menos Espanha, e cada vez mais uma capitalzinha castelhana.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Nebulosidades auditivas (57)

Este texto é também sobre Stephen Hawking, que faleceu há uns dias.

O uso de sintetizadores foi popularizado no final dos anos 60 - por exemplo, era famoso o órgão de Ray Manzarek nos Doors. No entanto, bandas que usassem exclusivamente sintetizadores, só apareceram com o movimento New Wave, na transição do final dos anos 70 para o início dos anos 80, quando passaram a fazer sucesso as baterias electrónicas. Como a fartura deu em excesso, no final dos anos 80, voltou-se à formação tradicional de bandas pop.

Pioneiros na música electrónica, minimal repetitiva, levando o conceito até ao limite robótico, estiveram os alemães Krafwerk. Este "Trans-Europa Express" de 1977 é um bom exemplo:


 Kraftwerk (1977) - Trans-Europe Express

Uma particularidade menos conhecida, é que apesar de ter sido razoavelmente simples simular música electronicamente, por exemplo, num computador, foi alguma surpresa a dificuldade em simular a voz humana. Não deveria ter sido surpresa... porque afinal de contas, cada pessoa tem uma voz diferente, e há milhões de pessoas! Passar um texto a voz era simples, mas ficava estranho, e muito mais difícil era passar voz a texto (ainda hoje existem múltiplas dificuldades e falhas).

É neste contexto, do lado simples, que aparece a voz de Stephen Hawking... muito similar à voz sintetizada que podemos ouvir na faixa "Computer World" (1981), e que ele teria a possibilidade de operar, a partir de 1986.

Inicialmente o sistema era controlado pelo premir de um botão, associado à escolha de palavras, mas tendo ficado evidente que não havia aí nenhum movimento perceptível, a partir de 2005... foi dito que o sistema reconhecia o movimento do queixo por infravermelhos (entre outras coisas, como a previsão de palavras, que é usada nos telemóveis).

Há até um programa online que permite simular a mesma voz:
Durante estes 30 anos não conheci a utilização do mesmo sistema, ou similar, em mais ninguém, limitado fisicamente. E há diversos casos, nomeadamente em pessoas que são vítimas de AVCs, ou de acidentes limitadores da mobilidade. Tornando-se caso único, até a voz sintetizada acabou por ser uma característica associada a si.
Por muita destreza que Hawking tivesse no controlo dos dedos, e ao contrário da progressiva falta de destreza associada à doença, conseguir com um simples clique falar a uma velocidade aceitável, seria proeza de Guiness... e não vi sequer exemplos de pessoas normais a tentar fazer o mesmo. 
Cada um acredita no que quer.

Faço apenas notar que quando a voz perde a tonalidade individual, pode ser usada por qualquer um para o mesmo efeito. Ou seja, qualquer um com acesso remoto ao computador de Hawking poderia dizer o mesmo. A garantia de que era dito por Hawking é apenas a garantia dos crentes, e mais nenhuma outra. Na prática, as instituições que albergavam Hawking podiam colocar no sintetizador o que queriam que Hawking dissesse... e se o fizeram ou não, não sei.

A importância de Hawking seria mínima, mas foi grande o mediatismo científico. Foi alimentada uma figura proeminente, no espaço estratosférico da divulgação mediática, onde a sua incapacidade foi usada a favor da fama. 
Nem tão pouco teve nenhuma teoria minimamente comprovada, perdendo a sua última aposta com Higgs, na descoberta do bosão. Higgs recebeu o prémio Nobel, Hawking não... mas acabou por ter fama como se tivesse recebido vários.
Poderia perder-se tempo a falar da "teoria de tudo" que era um básico nada. Um vício habitual de físicos que se esforçam por não perceber mesmo nada do mínimo de racionalidade filosófica.
Há quem o faça, nos circuitos onde o parecer é mais que o ser, e onde as complicações da linguagem simplificada de "buracos negros" e outras fantasias como "matéria negra", servem o propósito de uma comunicação que visa um enorme buraco negro social.


sexta-feira, 16 de março de 2018

Agroglifos (2) - o candelabro de Paracas

Já há uns tempos escrevi aqui sobre Agroglifos, mas não mencionei os desenhos no solo em Nazca, porque o assunto é sobejamente conhecido.

Ora, um aspecto salientado é que as figuras de Nazca seriam apenas visíveis para visitantes aéreos, e daí a questão do seu propósito, que alimentou a ligação à teoria dos "deuses astronautas". Acontece que algumas figuras são visíveis dos montes em redor, e foram reportadas por Pedro Léon em 1553, mas é certo que só mereceram atenção mais significativa com o início da aviação peruana no início do Séc. XX, e depois com a exploração sistemática por Maria Reiche a partir dos anos 1940, que lhes atribuiu um significado astronómico.

Porém, aqui gostaria de notar que há outras figuras. Em Paracas, junto à costa peruana, a 200 Km das linhas de Nazca, encontra-se um desenho que tem sido identificado a um "candelabro". A técnica do desenho é diferente, mas a particularidade mais interessante é que parece dirigido aos viajantes do mar, e não a viajantes do ar!

O candelabro de Paracas (Perú), que é visível do mar.

Acerca da cultura de Paracas já mencionámos o aspecto dos crânios elongados, e também as famosas pedras de Ica (que são encaradas como falsificações).

Ao que consta a figura tem 180 metros (semelhante à dimensão em Nazca), e é visível no mar a 20 Km de distância. Tem também sido identificado a uma possível "árvore da vida", e foi datada ao Séc. II a.C.
Nesse aspecto é interessante referir uma pintura rupestre no interior argentino, em Cerro Colorado (Cordoba, Argentina), que apresenta algumas semelhanças.

Cerro Colorado - pintura rupestre semelhante. À direita - mapa com Cerro Colorado, Paracas e Nazca.

Convém notar que sendo de uma região bastante diferente, a mais de mil quilómetros de distância, não se poderá concluir muito, e além disso as pinturas rupestres foram datadas como sendo mais recentes (circa Séc. V d.C.). No entanto, poderia identificar um mesmo tipo de símbolo comuns às culturas de Paracas e do Cerro Colorado.

Interessa aqui o propósito destes grandes agroglifos, dos Nazca e de Paracas, que podemos presumir poderem ter intenções semelhantes, até porque a datação é próxima, com cerca de 2 mil anos (entre o Séc. II a.C. e II d.C.).

Se a ideia era uma comunicação com os deuses, então se no caso Nazca as divindades viviam no ar, no caso de Paracas, seriam deuses marítimos. Claro que isto pode referir-se não a deuses, mas também a ET's, conforme tem sido popular no caso Nazca... mas um pouco mais difícil de convencer neste caso de Paracas... a menos que as naves espaciais fossem apenas navios!

Essa é outra possibilidade - estas culturas terem sido visitadas por embarcações, e naquele intervalo de datas poderiam ser chineses ou romanos (ou mesmo cartagineses). A perspectiva de visitantes aéreos, pois essa não encontra explicação com a nossa historiografia, mas não seria nada impossível de ocorrer. Basta seguir a tradição chinesa, que refere Zhuge Liang como inventor dos balões aerostáticos, para repararmos que a datação prevista coincide com a dinastia Han, onde ficou a tradição das lantenas de Kongming, chamados entre nós - balões de S. João.


domingo, 11 de março de 2018

Desafinações visuais (2)

Os tempos seguintes ao 25 de Abril de 74 foram curiosos, porque nos apresentaram uma versão diferente das coisas. Quem nasceu com a exploração espacial, não deixou de ser bastante influenciado pelo assunto, e pior, a partir de 1973, ficou frustrado, porque terminaram as missões Apollo.

Astronautas eram americanos, porque os russos eram Cosmonautas.
Só percebi a subtil diferença no título, quando fui perder o meu tempo numa publicitada exposição sobre a "história da cosmonáutica". 
Nessa história em filme, os astronautas não existiam... só havia cosmonautas (russos), como Yuri Gagarine e Valentina Tereshkova. Não me lembro se era falado sobre a ida russa à Lua, que foi feita em missão não tripulada, mas certo foi que de Neil Armstrong ou Buzz Aldrin, não se ouviu falar, nem das missões Apollo. 
Não percebi qual foi a ideia (do PCP, certamente o patrocinador do evento, por via da URSS), mas ao ver a manipulação descarada, não esqueci o golpe. Poderiam até ter dito que as explorações americanas eram uma treta, e que o homem nunca tinha ido à Lua, etc... Mas não! Simplesmente ignoravam a exploração espacial americana, que sabiam ser a única publicitada antes do 25 de Abril.

O aparecimento dos Space Shuttle em 1981, fez-me seguir em directo novas transmissões, ouvindo os ignotos comentários de Eurico da Fonseca... um dos pseudo-especialistas, tal como depois aconteceu com Carvalho Rodrigues. A televisão sempre teve o dom de escolher os piores, para os maquilhar como melhores. Cada frase que diziam, era "cada tiro, cada melro", dificilmente acertavam uma que fosse. Não havia dúvida que eram os melhores agentes para uma política de desinformação.

Bom, mas o Space Shuttle foi uma boa jogada publicitária da NASA... durante os anos 80 ainda se pensou que a razão da suspensão do programa Apollo tinha sido a mudança de filosofia na aeronáutica, pois fazia algum sentido a lógica do "vai-e-vem". Claro que nos anos 90 já não era convincente... e a partir daí foi sempre a piorar, até restar hoje como uma questão de fé. 
Mas, isso é outra história, de que falei várias vezes, e da última vez aqui:

Vamos então concretamente ao assunto deste post.
Nesse texto estava uma referência a "uma série em que as naves espaciais levantavam do mar"...
Não fazia ideia de quando tinha passado na RTP1, mas fazendo uma pesquisa um pouco mais atenta pelo Google, cheguei finalmente ao "Raumpatrouille Orion":

Raumpatrouille Orion (1966) - série de ficção científica alemã.

Depois é possível verificar neste site, que o título português foi "As fantásticas aventuras da Nave Órion", e passou na RTP1 em 1977.
Tudo o que me lembrava, passados mais de 40 anos (mas seria indiferente há 20 anos atrás), basicamente reduzia-se ao remoinho do mar, de onde a nave espacial saía:

A série era filmada ainda a preto e branco, mas isso não serve para disfarçar os péssimos efeitos especiais que tinham sido usados então.
Que ideia tinham então os adolescentes desses maus efeitos especiais?
- Nenhuma...

Era basicamente esse ponto que gostava de salientar!
Aquilo que nos parecia "bem feito" à época, passado algum tempo depois, chega a parecer ridículo!

Ficámos mais espertos?... ou éramos menos sensíveis?

Podemos dizer que era um problema de idade, mas a questão é que estas séries eram também apreciadas por "malta mais velha", que igualmente não detectava nenhuma anormalidade.
Mais, podemos verificar o mesmo com outros filmes que foram produzidos posteriormente, onde os efeitos especiais até ganharam prémios na altura, e que hoje vemos com deficiências notórias (por exemplo, o Total Recall de 1990, que ganhou o óscar de melhores efeitos visuais).

Aquilo que me parece que se passa, é simples... ganhámos muito maior sensibilidade!
Ficámos muito mais "esquisitos", ao passar de televisões com má definição, para televisores HD, e agora UHD 4K, etc...
Qualquer coisa que antes era uma "perturbaçãozinha", passou a ser uma "enorme perturbação", porque a política comercial agressiva tornou-nos mais exigentes, e queremos perfeição no detalhe.
Por isso, é um exercício curioso ver esses filmes de ficção científica antigos, com os olhos actuais.
Sm, ficámos mais sensíveis e exigentes... e talvez mais espertos, por isso.

Não será à toa que "se perderam" os originais dos filmes das "alegadas idas à Lua"... e que foram feitas novas versões com "melhor qualidade", ou seja, para não serem notados eventuais problemas!
De qualquer forma, nota-se que em "2001, Odisseia no Espaço", os problemas de tecnologia do filme não são propriamente uma falha de qualidade na resolução, talvez porque Stanley Kubrick tivesse uma sensibilidade mais ajustada ao nosso tempo, do que ao tempo em que viveu.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Desafinações visuais (1)

Não fazia a mínima ideia do nome do filme, sabia apenas que era espanhol, e que o tinha visto quando ainda era "criança"... e que me meteu um daqueles medos, que não se esquecem!

O filme é de 1972, mas não sei quando a RTP o passou. Deve ter sido em 1974, ou depois, porque não me parece que fizesse parte de nenhuma programação aconselhada a menores, em tempos mais conservadores.
"La Cabina" (1972), um filme de Antonio Mercero.

Sei que vi o filme sózinho, a seguir ao jantar, pois com alguma sorte o filme foi curto, e sei que ainda fiz um esforço para que ninguém viesse e ficasse na sala. Ou seja, apesar de não augurar muito para um filme espanhol, fiquei determinado a ver o filme até ao fim... bom, e que final! Não foi à toa que recebeu diversos prémios internacionais, inclusive um Emmy em 1973.

Não querendo fazer um spoiler, porque a maioria das pessoas não viu o filme, interessa que a situação bizarra vai ter um final ainda mais bizarro, e o que causou maior medo, ou incómodo, foi a ausência de nexo explicativo.
....
Uma vantagem dos tempos actuais é justamente permitir reencontrar o filme, a mais de 40 anos de diferença. E é um bom teste à memória, para ver a diferença, entre o que tinha memorizado e o que estava de facto no filme. Por exemplo, não me lembrava minimamente da cara do actor. Praticamente, tudo o que tinha na memória, era a situação de um sujeito que, sem razão aparente, fica preso na cabine telefónica; que diversas pessoas o tentam ajudar (não me lembrava que ele também fora gozado), sem qualquer sucesso; e que finalmente vai parar ao armazém onde estavam os restantes na mesma situação. Lembrava bem a imagem cadavérica, que agora me pareceu um boneco mal feito, e lembrava o desespero do indivíduo. Já não me lembrava da cena final, com a instalação de nova cabine...

O aspecto principal do filme é a aparente ausência de causa plausível para os acontecimentos.
Não há propriamente a apresentação de um vilão que conceba o macabro esquema.
Apesar da anormalidade, tudo funciona com uma certa naturalidade, onde os empregados são indiferentes ao destino dos capturados pela cabine, e são apenas peças de uma aparelhagem mecânica. O desespero da situação culmina com a antecipação do destino, vendo os semelhantes mortos e esquecidos nas cabines, num grande armazém.
É claro que o filme teria a possibilidade de terminar bem... bastava fazer chegar a família, e fazer crer que tudo não passara de uma "brincadeira" organizada.

Porém, o propósito era chocar o espectador, provavelmente numa alegoria ao que acontecia num regime ditatorial, como era ainda a Espanha de Franco, em 1972.
Afinal, numa ditadura bastava ser detido como opositor - pela cabine... e depois de uma fase em que se tentava libertar, com ajuda de uns, e gozo de outros, acabaria levado para uma prisão onde seria vetado ao esquecimento (a mais famosa em Espanha seria a prisão panóptica de Carabanchel), ou acabaria morto e desaparecido (caso das ditaduras chilena e argentina).


No entanto, enquanto nos regimes ditatoriais há normalmente uma figura que concentra as culpas (em Espanha foi Franco), neste filme a culpa não tem alvo identificado, e depois haveria um outro filme canadiano de 1997 que seguiria o mesmo tipo de enredo - chamava-se "o Cubo".


domingo, 4 de março de 2018

Vês ou Bês? (1)


Há o que pretendemos fazer e há o que fazemos...

- Por vezes, tens que ouvir trocando bês por vês! Vês?
- Não, não bejo! Queres dizer que Beja é Veja?
- Talvez! 
- Ou, tal vês? 
- Por exemplo, o verbo "acabar", se leres como "acavar"... "a cavar", faz algum sentido.
- Que sentido?
- O sujeito que terminava de cavar uma seara, diria "Cavei-a!" ou "A cavei!"... "Acavei", "Acabei"!
- Isso não tem ponta por onde se lhe pegue!
- Ponta?... não. Cabo! Dizer "acabo", ou dizer levei "a cabo", tem o mesmo sentido.
- Então já não precisas aí dos vês pelos bês? Agora é quê? O "cabo" da enxada?
- Não dá para explicar apenas com um ou dois exemplos! Considera agora "aceitar".
- Considero "janela"... isso indica "já nela"?
- Se queres falar, eu escuto. Queres ouvir ou falar?
- Fala lá... que deves perceber "fá-la lá!"

Fez-se uma pequena pausa de silêncio, misturado com sorrisos, e continuou.

- Mencionei "aceitar", onde "aceita" pode ser visto como "a ceita"!
- Tens muitas dessas, e não levam a lado nenhum...
- "Aceite" liga com "Azeite". Unção com azeite é um ritual de iniciação, um baptismo, de aceitação.
- Ridículo. Ligas isso a uma "ceita"?
- Sim. Repara ainda que soa como "sei ta", no sentido que a sei, que está sabido.
- Não faz nenhum sentido.
- Certo, pensa agora em "abaixar".
- Essa é óbvia, porque está "a baixar"... é óbvio que há prefixações válidas!
- Queres ouvir tudo?
- Tudo bem, mas só acho que não queres perceber que já percebi!
- "Baixam" soa como "Vai chão", ou seja, algo baixo, rente ao chão.
- Nada de novo, apenas estás com jeito para imaginar coisas.

Mais um pequeno silêncio, e o outro continuou.

- Aconselho é levar "a conselho", e sim nada de especial, porque um conselho aconselha. Mas passamos à palavra "conselho", que sugere "com selho". O que é selho?
- Sei lá... tem significado?
- Tem, é o mesmo significado que "senho" ou "sinal". Creio que o "h" também nestes casos se pode ignorar, e assim "selho" é como um "selo", uma senha ou sinal. Portanto, um conselho não era apenas uma opinião, era uma opinião de quem estava outorgado por um "selo" profissional, ou brasão.
- Não é coincidência?
- Coincidência... vem de "co-incidir", incide em conjunto. O prefixo "co" ou "com" está sempre associado a um conjunto, a uma companhia. Quando incidem em conjunto, coincidem.
- Então e "incidir"?
- Já agora, nota o "conjunto" que é "com junto"...
- Sim, e companhia, o que é "panhia"?
- Uma de cada vez! Essa é mesmo reconhecido que o "h" cai, ficando "com pania", e supõe-se que se aplicava aos que partilhavam o mesmo pão, "pano", "pania".
- O original seria "compano" ou "compão"?
- Vai explorar... esta raiz não fui eu que a disse! Mas voltamos a "incidir", conforme sugeriste. Nesse caso pode ser variação de "in ceder", como em "ceder". Porque "ceder" é "se der", no sentido que vai dar de si. Ou melhor, o que "em si dê", ficaria "incide".
- Estás de novo a forçar tudo! O que "em si dá", seria uma quebra. Então e "decidir"...
- Como em "decido"?... pode-se ler "de si dou". Poderia até ser alternativo... do género "em si dou" (incido) ou "de si dou" (decido). Originalmente na alternativa, ou apanhavam, ou eram usados.
- Continuas no puro delírio?... e "delírio"?... é do lírio?
- Lírio... li e rio, de rir.
- Pois... Mas, no caso do "cedo", como distingues o "cedo" da manhã, do "cedo" de ceder?
- Concordas que quem "ceder" é como quem "se der"? 
- Ok, posso aceitar... indo para essa ceita!
- Tens também "sedar" como num sedativo, para adormecer... para a pessoa "se dar" ao sono.
- Boa, mas não responde ao ser "cedo", como de manhã cedo.
- Respondi. O "cedo" seria relativo ao dormir, como em "sedar". Além disso, repara que o "dormir" soa como à "dor me ir", num sentido que indicaria uma vida penosa face ao sonho. Ou ainda, como num "dormente", em que a dor mente?
- Ridículo!
- Ri do culo?...
- Mera provocação!
- Provocar é "pro vocar", é para vocalizar. E terminando nos bês e vês, tens "vocal" e "bucal", num tempo em que "a voz" era dos "avós" dirigida "a vós".

Anne Clark (1984) Sleeper in Metropolis