quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Nebulosidades auditivas (73)

Comemoraram-se, há duas semanas, os 50 anos do Woodstock de 16-18 de Agosto de 1969.
Esteve ainda considerado um Woodstock 50 em 2019, mas a organização falhou na sua realização.

Foi entretanto relembrado que o Woodstock de 1969 teve uma organização problemática, que uma grande parte das bandas recusou ou cancelou, e que o espectáculo apenas se realizou porque havia mesmo vontade de o fazer... algo que parece ter falhado neste Woodstock 50. 

O Woodstock terá sido lamacento ou imundo, mal organizado, mas o que interessou para o mito foi uma das maiores junções hippies, com bandas e música de qualidade, num ambiente artificial de "paz e amor". Se não eram as melhores ou as mais populares bandas, o próprio festival acabou por servir de cartão de visita para a posterioridade.
Dadas as circunstâncias, as interpretações mais ou menos caóticas, como as dos The Who, ou a de Jimmy Hendrix, tornaram-se maiores do que é dado ver, talvez porque se apressou a exacerbar o evento para o campo da imaginação. 
Woodstock 1969 - The Who : "My Generation"

O que é certo é que durante os anos seguintes, Woodstock era uma palavra que resumia a mística hippie dos anos 60, ligada ao movimento esotérico da "Era de Aquário". 
No início dos anos 80, a geração seguinte sentia-se órfã de um evento semelhante. Em 1979, o lançamento do musical "Hair" de Milos Forman, baseado no musical da Broadway de 1968, chamado "Hair: The American Tribal Love-Rock Musical", serviu para relembrar que esse espírito hippie tinha existido, e tinha sido perdido.
Afinal, os jovens com 20 anos nos 1960's tinham passado a 40 anos em 1980, e os hippies eram agora yuppies, que dos charros de erva nos jardins tinham passado às linhas de coca nos gabinetes.
Também ao movimento hippie estava associada a guerra do Vietname, ou outras guerras coloniais, mas o revivalismo purificado gosta apenas de recordar o seu lado cor-de-rosa.
Hair (filme de 1979) - Age of Aquarius

O equivalente ao Woodstock para os anos 80 terá sido o Live Aid, e isso mostra bem as diferenças.
O pretexto foi uma causa humanitária muito louvável... terminar com a fome em África, em particular na Etiópia. Infelizmente a sociedade ocidental usa estes cinismos na forma superlativa, quando na prática o que era difícil era alinhar na passerelle uma boa quantidade de prima-donas musicais, que boicotariam a presença se não achassem ter o devido destaque no alinhamento.

Já tinha sido experimentado o Band Aid no Natal de 1984, e no início de 1985 o USA for Africa.
Duas iniciativas deprimentes na sua superficialidade, sendo muito pior a americana que a inglesa.
Interessava aos ingleses ser amigo de Bob Geldof e aos americanos estar nas boas graças de Michael Jackson, para não ficarem de fora do clube do chá das 5, do evento de caridade. Prince não constou do USA for Africa, como também Michael Jackson acabou depois por se auto-excluir do Live Aid.

O Live Aid de 1985 teve assim dois palcos, um inglês em Wembley, com 70 mil espectadores, e um palco americano no JFK stadium de Filadélfia, com 90 mil espectadores. O evento foi de tal forma publicitado que envolveu a transmissão TV em directo a potencialmente 2 mil milhões de pessoas.
Em 13 de Julho de 1985, a maioria dos jovens do planeta tinha a televisão ligada no Live Aid.

O alinhamento inglês prometia um bom espectáculo, onde Bono tentou brilhar de forma exagerada e artificial (como passou a ser seu timbre), mas de facto, o que prendeu a atenção e valeu a tarde perdida em frente ao televisor, foi o momento em que Freddie Mercury actuou e interagiu com o público, em especial no final da canção Radio Gaga.
Ao pé da actuação de Mercury, os outros artistas ficaram pouco mais que vulgares...
Life Aid 1985 - The Queen : "Radio Gaga"

Depois, é claro, uma coisa são as intenções da malta jovem (que também não eram muito mais do que assistir ao espectáculo), mas as intenções da ajuda à Etiópia rapidamente revelaram naquilo em que redundaram... leia-se "Live Aid: The Terrible Truth" para entender que a maioria do dinheiro angariado foi canalizado directamente para que o regime do país mais pobre de África, a Etiópia, conseguisse o exército mais sofisticado desse continente. 
Os vendedores de armas ingleses e americanos agradeceram a candura dos seus jovens.

É claro que tudo isto se voltaria ainda a repetir, no Live 8, em 2005, de forma muito menos estrondosa, ao comemorar os 20 anos do Live Aid, recuperando a prima dona organizativa, Bob Geldof, que esteve meio-adormecida nas décadas seguintes. Neste caso, o evento teve um toque mais caricato incluindo no desfile Kofi Annan (secretário-geral da ONU), Bill Gates e até Brad Pitt ou David Beckham.

"No more excuses..." foi então o moto usado, e só admirará não terem ainda convencido o Geldof a juntar os amigos para salvar o planeta do "aquecimento global". Pode estar para breve...

O Live Aid, ou o Live 8, não foram mais do que institucionalizações cínicas do legado jovial do Woodstock que, pretendendo terem uma finalidade profilática planetária, não passaram de uma reunião de amigos, apadrinhados pelas editoras e afinal pelo próprio sistema que criticavam...

4 comentários:

  1. Há experiências próprias da idade que com o tempo deixam de fazer sentido... é o que se chama de - tornar-se adulto. Depois há aquelas experiências que não correm bem... fruto também, quem sabe, da idade e desta ânsia de mudar o mundo a cada geração.
    Este mundo pós-moderno é obcecado pela eterna juventude. Isto de envelhecer é assustador.. e de facto é, em grande medida... Enfim... que digam estes jovens fruto dessas experiências tão anos 60/70 que parecem ser agora novamente a "nova" fashion trend... isto já deve ser uma brand/marca registada...
    https://www.rtp.pt/play/p4555/a-historia-dos-filhos-dos-hippies-que-nunca-se-contou

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    1. Já nem me lembrava que existia essa Christiania, e até julgava que era na Alemanha, e que entretanto já tinha desaparecido. Pois, parece que não.
      Não consegui ver esse documentário, mas não é difícil perceber que uma tal sociedade deixe as crianças meio-baralhadas.

      Parece que Christiania tem um filho pródigo, o vocalista dos Lukas Graham:
      https://www.youtube.com/watch?v=N0o2Eqm6ccg
      ... com um tema que é apropriado: "7 years".

      Tirando os detalhes, o fim da vida assemelha-se ao processo inverso ao início da vida. Começamos com poucas ou nenhumas capacidades físicas, e no final da vida vamos regressando a esse ponto, há até a situação caricata de haver fraldas tanto para bebés como para seniores (e nem sequer precisam de ser muito velhos).
      No caso do filme de Jeremy Button, o processo era invertido... mas se os bebés começam por estar desprotegidos, precisando dos pais, de certa maneira os velhos ficam depois nessa situação, podendo precisar dos filhos. Acaba por ser tão ou mais natural meter os velhos no lar como meter as crianças na creche.

      Do ponto de vista da "natureza", se é que faz sentido falar assim, a degradação sucessiva da condição humana na velhice, acaba por ser um retirar de tudo o que deu, de tudo o que potenciou, fisicamente.

      Do ponto de vista intelectual, também se processa a mesma "experiência". Com a maior dificuldade de memória, grande parte das nossas aventuras juvenis ou adultas, vão-se perdendo no esquecimento, de certa forma igualando recordações de ricos ou pobres, prevalecendo mais os sentimentos.

      Também, tal como as crianças, os velhos vão ficando carentes de atenção, ao ponto daquele pessoal mais importantolas ficar obcecado com medalhas, reconhecimento, etc. E também aí se vê que aquelas crianças que cresceram bem sem nenhuns mimos especiais dos pais, vivem sem a necessidade do reconhecimento ou atenção dos outros, melhor que as outras.

      Creio que essa degradação final pode ter um "propósito cínico" da parte da natureza, cuidando de deixar o indivíduo reduzido à sua incapacidade total, com o propósito de avaliar o que essa "cobaia" considera mais importante, quando fica incapacitada da maioria das suas faculdades físicas.

      Pode parecer que a natureza é madrasta, e se está por completo a borrifar na nossa felicidade... e está, a curto prazo, porque (e isto é um pouco mais que um wishful thinking) o objectivo é considerado a longo prazo.

      Abraço.

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  2. Tente ir ao site da rtp2.. fui aí que consegui o link.... este documentário foi exibido há 2 semanas, aproximadamente... e é como diz, estas crianças ficaram meio baralhadas e falam dessa experiência (alguns perderam logo cedo os pais por causas das drogas). Há em particular um que menciona, logo no início, que se for pai, será um pai severo.. enfim... quanto ao resto, concordo... é o ciclo da vida - tudo nasce, cresce e morre. Somos finitos e o que ainda podemos perpetuar é a memória, através da passagem/transmissão de conhecimento para as gerações seguintes. E a partir daqui começa o questionamento... bem patente nos seus blogues :-)

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    1. Parece que já esteve, mas deixou de estar:
      https://www.rtp.pt/play/p4555/e423533/a-historia-dos-filhos-dos-hippies-que-nunca-se-contou

      aparece agora: "Este episódio não se encontra disponível".
      Mas, não é grave, percebi a ideia, ainda que seja notável que tal comunidade tenha conseguido manter-se ao fim de 50 anos.
      Na minha opinião só consegue manter-se porque tem essa necessidade de afirmação face a um exterior diferente. Se o projecto fosse alargado, e não tivesse a protecção das autoridades dinamarquesas, terminaria rapidamente, como tantos outros terminaram... por falta de cúpula protectora.

      Nisso, a natureza, neste caso a natureza humana, é extremamente cruel. Mesmo que parta de um grupo de anjinhos, um rebanho de ovelhinhas mais brancas que a neve, a natureza cuida de meter um bichinho na cabeça de algum deles, e essa ovelhinha transforma-se em lobo, arranja uma alcateia e termina tudo num despótico banho de sangue.
      Na prática somos forçados a concluir que sem uma pandilha a controlar na sombra, as coisas tendem a descambar sem qualquer controlo. Aliás, as polícias usam um certo esquema parecido, deixando sobreviver os criminosos que controlam, porque evitam o aparecimento de novos criminosos que não controlam.

      O problema é que a memória, passando mais o conto do que a realidade, vai eternizando a ficção... mas isso não livra do imposto da realidade, que será cobrado, mais tarde ou mais cedo.
      Abraço.

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