Apareceram de novo discussões públicas sobre a eutanásia, que poderá ser alvo de referendo ou legislação próxima.
A palavra tem raízes gregas de eu+thanatos, ou seja boa+morte. É curioso que o elemento "nato", referente ao nascimento, apareça na palavra morte "thanato", tal como é entender "eu" como "bom".
O que se entende por "boa morte", tem muito a ver com os entendimentos pessoal e comunitário.
Aparentemente ninguém pede para nascer, mas há quem peça para morrer.
Se o próprio tem a faculdade de escolher, o pedido pode parecer não fazer sentido, mas certamente faz em casos extremos. O problema tem abordagens simplistas, que consistem essencialmente em atender a súplicas desesperadas, ou então na recusa peremptória em decidir pela morte doutrem.
Deixo aqui o meu entendimento pessoal.
Para se falar de morte, convém entender a oposição, a vida.
A vida é uma experiência comunitária, começando pela sua origem, que resulta normalmente do entendimento entre duas pessoas de sexos opostos. Logo aqui entra a diferença entre o plano natural, e o plano humano, que o tende a distorcer. Mas não vou dissertar agora sobre isso, até porque a criação do ovo resulta de três intervenientes - os elementos masculino e feminino, e o "acaso".
Interessa que a criação de vida humana não é uma decisão unilateral, não é autogénese, pressupõe a existência de entendimento a dois, e mais que isso, pressupõe entendimento numa comunidade funcional onde o nascituro se irá desenvolver.
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Por exemplo, os filhos de escravos nasciam, não apenas porque alguns dos escravos toleravam a condição, mas também porque os seus "senhores" toleravam (e fomentavam) essa forma de vida em comunidade. A comunidade era até certo ponto funcional, e soube pelo menos evoluir da condição de escravidão a uma condição de dependência financeira, razoavelmente mais pacífica.
Um principal objectivo do indivíduo é avaliar o mundo em que nasceu.
Se todos os humanos concluíssem que a vida neste mundo não valia a pena, pois a sua melhor decisão seria, pelo menos, não trazer novos filhos ao mundo. Um suicídio colectivo, ou um absoluto desinteresse na paternidade, corresponderia de igual modo ao fim da humanidade.
A comunidade humana teve assim motivos para criar uma sociedade onde viver fosse um prazer, e não apenas um sacrifício persistente. A natureza foi-se encarregando de criar algumas das situações mais atrozes para a sobrevivência humana, algo a que comunidade humana conseguiu responder com sucesso, em muitos casos. Mas, por seu lado, a sociedade juntou ainda mais situações atrozes, mais dificuldades para a vivência. No computo geral, podemos dizer que atingimos uma qualidade de vida razoável, ou mesmo boa, para a maioria da população. Praticamente a natureza foi controlada, ao ponto de se garantir subsistência, e alguma qualidade de vida material, para a esmagadora maioria da população. A maior parte dos problemas reside essencialmente num despique constante, que tende a infernizar uma vivência, sobretudo devido às orientações enganosas, que tendem a privilegiar uma competição, na maioria das vezes inútil, face às possibilidades de colaboração.
A natureza continuará implacável nas limitações que pode impor como simples doenças ou acidentes, e é nesse ponto que surge a maioria das situações de "eutanásia".
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Portanto, a prática médica convive bem com situações que se assemelham a tortura ou até a prisão perpétua, mas tem dificuldade em atender à vontade do paciente - seja ela qual for, e não apenas nos casos em que solicita o término da tortura. Isso é perfeitamente compreensível, porque se a medicina continuar a visar o regresso ao estado anterior, é claro que a sobrevivência é mais próxima do que a morte... e o paciente é apenas isso - um paciente, que se deve sujeitar às capacidades e técnicas médicas existentes (podendo até ser convencido a servir de cobaia).
Convém notar que a prática médica segue mais um código de aceitação interna, e o envolvimento emocional com o estado do paciente é desaconselhado. Por isso, ou a medicina muda a sua filosofia interna, ou não é uma questão médica que se coloca no "problema da eutanásia". Enquanto a medicina continuar com uma filosofia de "mecânicos do corpo humano", procuro sempre manter uma distância de segurança do bisturi e do talhante.
Passamos ao problema jurídico, começando por notar que o suicídio já foi proibido, ainda que essa legislação fosse algo ridícula pela sua inaplicabilidade em caso de sucesso. De alguma forma, à sociedade não convém aceitar o seu falhanço... porque a desistência deste mundo, significa que não se dá valor ao mundo a que sociedade dá valor. É uma avaliação negativa da qual a sociedade não pode recorrer.
Nesse sentido, desde religiões a práticas morais, o suicídio sempre foi colocado como um egoísmo, um desrespeito pelos seus entes queridos, etc. Algo especialmente caricato, como se esses não estivessem a ser egoístas, menosprezando o sofrimento alheio.
Mais do que isso, a religião chegou a valorizar o sofrimento, prometendo depois recompensas na "vida eterna"! É claro que esta filosofia do sofrimento, de "o que arde cura", era especialmente indicada para que os "pacientes" aceitassem todo o despotismo sem sequer esboçar um protesto...
Ora, a avaliação que cada indivíduo faz do mundo que o envolve, só piorará se nem sequer desse mundo se poder libertar. Uma coisa é entrar numa câmara de horrores, algo muito diferente é nem sequer poder sair dela. Por isso, a sociedade só piora a sua avaliação, condenando a uma tortura de sobrevivência, quem prefere libertar-se dela. Nem é só uma questão de egocentrismo social, é uma questão de completo autismo, uma prática de tortura medieval, baseada em preconceitos religiosos.
Dito isto, nem médicos, nem ninguém, deve ser obrigado a provocar a morte alheia. Esse passo deve ser tomado pelo próprio, mas com acesso a todos os meios que o permitam fazer sem sofrimento. Quando isso não é possível pelo próprio, simplesmente os médicos, ou outros, devem afastar-se de manter uma vida que não pediu para ser mantida. Vendo-se incapazes de contrariar os acontecimentos, devem deixar correr o processo natural, assegurando apenas o mínimo de dor possível.
Finalmente, do ponto de vista religioso, é absolutamente contraditório que uma divindade boa preconize o mal, mesmo que o sofrimento alheio seja temporário.
Há sim um ponto importante a ter em conta "quando se vai desta para melhor"... é que nada garante que se vá para "algo melhor", e por isso parece ser boa recomendação que se tolere algum sofrimento. É que a este mundo não estaremos presos para sempre, mas nada garante que tenhamos a faculdade de desaparecer do próximo... e a vida eterna só me parece ser um paraíso para quem se libertou dos infernos que se criam em si mesmo.
No entanto, e como não quero acabar o texto com uma perspectiva assustadora, devo dizer que o propósito de divindades benévolas não é salvar os "bons", deixando os "maus" nos seus infernos... não há nenhumas "salvações" pela metade. As divindades benévolas, se necessário, e quando for tempo disso, descem ao ponto mais baixo dos infernos, e tentam até arrancar daí o belzebú mais retorcido.
Infelizmente, a Terra teve a capacidade de criar em si demónios tão finórios, que conseguiram iludir a todos, passando afinal por deuses salvadores.
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