O chamado "verdade ou consequência" era um dos jogos mais parvos que se jogava na infância/ adolescência. Não creio que se possa considerar um jogo popular... as suas origens parecem remontar ao princípio do Séc. XVIII, enquadrando-se bem num certo treino de mentalidade cortesã doentia, onde se exercitava o espírito de grupo, ou melhor, de matilha.
Afinal, procurava-se ou a exposição de uma verdade embaraçosa ou o embaraço de uma actividade compensatória, tomando-se como equivalentes. Servia como uma espécie de treino para um mundo perverso sem alternativas agradáveis... O eventual interesse só resultaria de grande cumplicidade entre os promotores, ou remetendo para alvo de ridículo os novos convidados, externos ao grupo de interesse. Todas estas características são típicas de uma corte mordaz, cujo objecto é a própria corte, o galanteio, a sedução com os mais diversos atractivos fugazes.
A burguesia dos Séc. XIX e XX, sendo seduzida pelo fausto aristocrata faria facilmente o papel ridículo de novos convidados, acabando por transmitir cedo aos seus petizes as perversidades que iriam experimentar... por sua vez, estes petizes, por via destes jogos, acabaram por difundir o processo à restante população.
Bom, mas este texto não é sobre as frustrações duma burguesia que julgou poder ser feliz com devaneios hedonistas dependentes dum privar privado. Afinal, o seu maior fascínio - o isolamento parcial (o grupo privado, no sentido elitista), esbarraria com o maior temor - o isolamento total (a rejeição por esse grupo). Tal como no jogo dos petizes, as mecânicas de grupo decidiriam entre o gozar e o ser gozado.
Este texto é sobre a verdade que pode haver na "consequência".
O encadeamento de factos, no sentido causa-efeito, é uma visão do observador limitado, circunscrito pela dimensão temporal. É um problema de modelação animal, já que uma previsão adequada actua no sentido de salvaguarda da sobrevivência - o animal melhor capaz de antecipar acontecimentos, mais probabilidade terá de os aproveitar em seu favor. As frases normalmente terminam aqui. É suposto entender-se o que é "em seu favor"... porém, raramente o próprio questiona os seus interesses. Habituou-se a saber quais são, e não indaga a origem, porque são esses, ou se fazem sentido.
Se o sujeito considerar que são os seus ímpetos irracionais, nem adianta procurar a origem - voga simplesmente num caos que não quer compreender. Se considerar que são os seus desejos racionais, tem que lhes procurar origem e fundamento... algo a que não basta o diz-que-disse dos outros. Aí está sujeito ao mesmo fado que qualquer desgraçado isolado. Não se estando a bater contra ninguém, a posição alheia é praticamente irrelevante, e só é interessante quando concorre na resolução do problema.
Os deuses eram crianças... A inimputabilidade de actos gera irresponsabilidade e inconsequência. Na mitologia greco-romana para evitar a constatação dessa acção inconsequente, mesmo Zeus sofria agruras em resultado das suas decisões. O Olimpo só não era uma brincadeira pouco digna de relevo, porque se introduziram limitações e imputabilidade aos deuses pelas suas acções. Sem essa penalização, a figura dos deuses pareceria a de crianças... e mesmo assim pouco se livravam duma imagem adolescente.
Sem a iminência de contrariedades, sem desconhecimento, o que nos motivaria à reflexão, ao pensamento profundo? O nosso carácter circunspecto, adulto, provém de um medo de consequências. A nossa responsabilidade resulta de uma associação entre as nossas acções e o seu eventual resultado. Essa responsabilidade será tanto maior quanto mais considerarmos que influenciamos o mundo que nos rodeia. Se a certa altura cada acto nosso pesasse de sobremaneira nesse contexto, tanto mais tomaríamos cuidado com todos os detalhes, tornando a vivência num fardo incomportável. Só a inimputabilidade compensa o acréscimo de responsabilidade... e por isso quanto maior é a potência responsável, mais tenta cuidar de ser inimputável. É nessa fase que começa a ser inconsequente, irresponsável, já que o resultado dos actos não parece pesar sobre si. Porém, uma coisa são as dimensões que antevemos, outras são as que nos escapam... e por isso a potência nunca parece ser suficientemente grande para garantir a inimputabilidade, bastando para isso haver o mais pequeno ser que escapa ao controlo total.
Todas estas noções caem na relação causa-efeito. Todas estas noções resultam de uma vivência do tempo como uma entidade ambígua, que permite previsibilidade nalguns actos, mas não deixa de trazer uma associada imprevisibilidade. A previsibilidade deu-nos um pensamento não caótico, e a imprevisibilidade deu-nos um pensamento interminável... a ausência de ambos os aspectos remeteria à loucura.
Qual foi a causa da fama de Hércules, senão o efeito que ela teve?
Perante trabalhos em que improvavelmente sobreviveria, a sua sobrevivência com sucesso ditou o registo.
Por isso, quando Héracles é elevado ao panteão de divindade, é pela improbabilidade do feito, como se o universo tivesse decidido o resultado antes dele acontecer. Isso só é atestado após os acontecimentos, é um privilégio decorativo dos poetas, pois os escritos não se sujeitam à ordem temporal.
O herói era antes de o ser, porque afinal era filho de Zeus... mas a paternidade divina só foi atestada após a vivência humana singular. Antes disso seria visto como um igual pelos outros.
Há associações entre acontecimentos que são convenientes, pois ao aproveitarem a ordem no mundo não-caótico servem a vivência futura pela previsão, e disso é feita a ciência. Bebendo no passado podemos prever uma parte do futuro... mas apenas uma parte dele. Sobre o imprevisível parece que nada se poderia dizer, mas não é assim - podemos compreender o imprevisível sem o prever. A previsão seria logicamente impossível, por definição, mas a compreensão não conhece limitação... e é pelo menos fácil compreender que o imprevisível nos é necessário.
A consequência vai mais além do que a ordem temporal vivenciada. Não é apenas um produto do passado, é um produto do conjunto - passado e futuro, que se revela no presente. Esse é um nexo que vai para além dos tempos, determina e revela a própria noção de tempo. Por isso, a verdade não é um assunto do passado, é também um assunto do futuro... e é essa verdade futura que faz surgir o passado como consequência. Do ponto de vista do pensador, há um tempo de raciocínio que é independente do tempo presenciado e a consequência é uma noção do passado para o futuro, na compreensão. Porém, libertando-se desse aspecto da compreensão do observador, a consequência não está presa a nenhuma ordem temporal. A existência de um passado que justifique o presente é um nexo necessário à própria existência, sob pena dela se manifestar como infundada pelo pensamento que a contempla. E é esse nexo de existência que remete o futuro como causa do passado. O passado não é suficiente para o nexo existencial, já que o passado poderia remeter para qualquer existência, ou até para a não-existência absoluta. Só depois de se cumprir no futuro completo é que a consciência despertou e renasceu para se contemplar, podendo então ver o futuro como um passado inconsciente.
Afinal, procurava-se ou a exposição de uma verdade embaraçosa ou o embaraço de uma actividade compensatória, tomando-se como equivalentes. Servia como uma espécie de treino para um mundo perverso sem alternativas agradáveis... O eventual interesse só resultaria de grande cumplicidade entre os promotores, ou remetendo para alvo de ridículo os novos convidados, externos ao grupo de interesse. Todas estas características são típicas de uma corte mordaz, cujo objecto é a própria corte, o galanteio, a sedução com os mais diversos atractivos fugazes.
Picasso - bacanal... por estranho que pareça, os quadros ilustrativos de festas,
remetem normalmente para os devaneios mitológicos de Baco.
A burguesia dos Séc. XIX e XX, sendo seduzida pelo fausto aristocrata faria facilmente o papel ridículo de novos convidados, acabando por transmitir cedo aos seus petizes as perversidades que iriam experimentar... por sua vez, estes petizes, por via destes jogos, acabaram por difundir o processo à restante população.
Bom, mas este texto não é sobre as frustrações duma burguesia que julgou poder ser feliz com devaneios hedonistas dependentes dum privar privado. Afinal, o seu maior fascínio - o isolamento parcial (o grupo privado, no sentido elitista), esbarraria com o maior temor - o isolamento total (a rejeição por esse grupo). Tal como no jogo dos petizes, as mecânicas de grupo decidiriam entre o gozar e o ser gozado.
Este texto é sobre a verdade que pode haver na "consequência".
O encadeamento de factos, no sentido causa-efeito, é uma visão do observador limitado, circunscrito pela dimensão temporal. É um problema de modelação animal, já que uma previsão adequada actua no sentido de salvaguarda da sobrevivência - o animal melhor capaz de antecipar acontecimentos, mais probabilidade terá de os aproveitar em seu favor. As frases normalmente terminam aqui. É suposto entender-se o que é "em seu favor"... porém, raramente o próprio questiona os seus interesses. Habituou-se a saber quais são, e não indaga a origem, porque são esses, ou se fazem sentido.
Se o sujeito considerar que são os seus ímpetos irracionais, nem adianta procurar a origem - voga simplesmente num caos que não quer compreender. Se considerar que são os seus desejos racionais, tem que lhes procurar origem e fundamento... algo a que não basta o diz-que-disse dos outros. Aí está sujeito ao mesmo fado que qualquer desgraçado isolado. Não se estando a bater contra ninguém, a posição alheia é praticamente irrelevante, e só é interessante quando concorre na resolução do problema.
Os deuses eram crianças... A inimputabilidade de actos gera irresponsabilidade e inconsequência. Na mitologia greco-romana para evitar a constatação dessa acção inconsequente, mesmo Zeus sofria agruras em resultado das suas decisões. O Olimpo só não era uma brincadeira pouco digna de relevo, porque se introduziram limitações e imputabilidade aos deuses pelas suas acções. Sem essa penalização, a figura dos deuses pareceria a de crianças... e mesmo assim pouco se livravam duma imagem adolescente.
Sem a iminência de contrariedades, sem desconhecimento, o que nos motivaria à reflexão, ao pensamento profundo? O nosso carácter circunspecto, adulto, provém de um medo de consequências. A nossa responsabilidade resulta de uma associação entre as nossas acções e o seu eventual resultado. Essa responsabilidade será tanto maior quanto mais considerarmos que influenciamos o mundo que nos rodeia. Se a certa altura cada acto nosso pesasse de sobremaneira nesse contexto, tanto mais tomaríamos cuidado com todos os detalhes, tornando a vivência num fardo incomportável. Só a inimputabilidade compensa o acréscimo de responsabilidade... e por isso quanto maior é a potência responsável, mais tenta cuidar de ser inimputável. É nessa fase que começa a ser inconsequente, irresponsável, já que o resultado dos actos não parece pesar sobre si. Porém, uma coisa são as dimensões que antevemos, outras são as que nos escapam... e por isso a potência nunca parece ser suficientemente grande para garantir a inimputabilidade, bastando para isso haver o mais pequeno ser que escapa ao controlo total.
Todas estas noções caem na relação causa-efeito. Todas estas noções resultam de uma vivência do tempo como uma entidade ambígua, que permite previsibilidade nalguns actos, mas não deixa de trazer uma associada imprevisibilidade. A previsibilidade deu-nos um pensamento não caótico, e a imprevisibilidade deu-nos um pensamento interminável... a ausência de ambos os aspectos remeteria à loucura.
Qual foi a causa da fama de Hércules, senão o efeito que ela teve?
Perante trabalhos em que improvavelmente sobreviveria, a sua sobrevivência com sucesso ditou o registo.
Por isso, quando Héracles é elevado ao panteão de divindade, é pela improbabilidade do feito, como se o universo tivesse decidido o resultado antes dele acontecer. Isso só é atestado após os acontecimentos, é um privilégio decorativo dos poetas, pois os escritos não se sujeitam à ordem temporal.
O herói era antes de o ser, porque afinal era filho de Zeus... mas a paternidade divina só foi atestada após a vivência humana singular. Antes disso seria visto como um igual pelos outros.
Há associações entre acontecimentos que são convenientes, pois ao aproveitarem a ordem no mundo não-caótico servem a vivência futura pela previsão, e disso é feita a ciência. Bebendo no passado podemos prever uma parte do futuro... mas apenas uma parte dele. Sobre o imprevisível parece que nada se poderia dizer, mas não é assim - podemos compreender o imprevisível sem o prever. A previsão seria logicamente impossível, por definição, mas a compreensão não conhece limitação... e é pelo menos fácil compreender que o imprevisível nos é necessário.
A consequência vai mais além do que a ordem temporal vivenciada. Não é apenas um produto do passado, é um produto do conjunto - passado e futuro, que se revela no presente. Esse é um nexo que vai para além dos tempos, determina e revela a própria noção de tempo. Por isso, a verdade não é um assunto do passado, é também um assunto do futuro... e é essa verdade futura que faz surgir o passado como consequência. Do ponto de vista do pensador, há um tempo de raciocínio que é independente do tempo presenciado e a consequência é uma noção do passado para o futuro, na compreensão. Porém, libertando-se desse aspecto da compreensão do observador, a consequência não está presa a nenhuma ordem temporal. A existência de um passado que justifique o presente é um nexo necessário à própria existência, sob pena dela se manifestar como infundada pelo pensamento que a contempla. E é esse nexo de existência que remete o futuro como causa do passado. O passado não é suficiente para o nexo existencial, já que o passado poderia remeter para qualquer existência, ou até para a não-existência absoluta. Só depois de se cumprir no futuro completo é que a consciência despertou e renasceu para se contemplar, podendo então ver o futuro como um passado inconsciente.
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