quinta-feira, 12 de julho de 2018

O futuro do passado

Existem moedas ditas "janiformes" que representam o deus Jano, ou Janus, que dá nome a Janeiro, e que tem duas cabeças - uma olhando o passado (cabeça mais nova) e outra olhando o futuro (cabeça mais velha). Simboliza assim a transição entre anos, entre o ano velho e o ano novo, entre o passado e o futuro, e por isso é natural a sua colocação como o primeiro mês do ano novo. 
Na tradição celta, a divindade Lugo era representada por três cabeças, talvez considerando a face voltada a nós, como sendo a face presente.
Moeda janiforme, supostamente da cidade de Tarsus (c. 400 a.C.)

A nossa compreensão habitual leva-nos a considerar que o passado influencia o futuro, e normalmente não há compreensão para a influência no outro sentido...
Por isso, em jeito de tema de férias, deixo à consideração algumas linhas.

Não vou falar do passado que está na nossa memória, mas sim do passado histórico que nos chega através de registos escritos, e conclusões científicas.

Convém lembrar que antes do estabelecimento da Ciência como método válido, as informações ou conclusões acerca do nosso passado resultavam exclusivamente de histórias... na melhor das hipóteses, de documentos ou monumentos históricos. Assim, até ao Séc. XVIII, o passado era basicamente o informado pela fiabilidade desses documentos, sendo tomada a Bíblia como o mais fiável de todos. Foi basicamente o método científico que alterou toda a percepção do passado, indo ao ponto, que até aí seria escandaloso, de contestar a própria Bíblia.

Portanto, o que sabemos do passado depende de forma significativa do futuro. 
Uma evolução científica poderá chegar ao ponto de sabermos exactamente o que ocorreu no passado?
A minha resposta será sim... se a ciência em causa for fidedigna.
O problema é que a credibilidade da comunidade científica, quando se rege por outros interesses, tem tanta, ou até menos validade, que a credibilidade dos mitos, das religiões, e de tantas outras historietas que nos foram sendo impigidas.

Há com efeito dois tipos de Ciência.
- Uma é a Ciência comunitária, que ainda que possa estar cheia de boas intenções, é essencialmente vendida, ou oferecida, como uma crendice igual a tantas outras. Em vez de devermos acreditar nos padres, bispos, etc., devemos acreditar no que dizem os cientistas, mesmo que a população não tenha o mínimo de formação para ser crítica relativamente aos factos, ou pseudo-factos.
- Outra é a Ciência individual, que é algo completamente diferente, e basicamente ausente como disciplina instituída. Ou seja, raramente foi dado ao indivíduo o privilégio de ter acesso facilitado à Ciência, e de poder por si mesmo chegar às mesmas conclusões. Dá muito trabalho, e crê-se ser um desperdício de recursos, tempo, e dinheiro.

A Ciência comunitária continuará a fazer o seu percurso, colocando comunidades dominantes com acesso privilegiado aos recursos. No entanto, irá basear-se sempre numa questão de fé... de fé nos cientistas, nos seus bons intuitos, na sua honestidade, etc. Em suma, irá colocar a fé nalguns homens, sem pecados, moralmente incorruptíveis, agindo para o bem, em nome da humanidade... Claro que, mais tarde ou mais cedo, saberemos onde essa fé vai levar - ao mesmo ponto onde levaram as outras.

A internet permitiu uma difusão do conhecimento sem precedentes, tornando basicamente acessível o conhecimento científico à maioria da população. A falta de maior conhecimento resulta de um misto de desinteresse, ou desmotivação, para coisas complicadas, por parte da maioria dos cidadãos, juntamente com um interesse silencioso em manter as coisas nesse ponto.
Mas a questão não se trata de tornar cada um num cientista de vanguarda, está praticamente na diferença entre acreditar nas imagens da NASA dos satélites de Júpiter, ou pegar num telescópio e vê-los. O problema começa por ser que a esmagadora maioria das pessoas nem tão pouco seria capaz de identificar Júpiter no céu. Mas isso não é apenas um problema da sociedade, é ainda uma disposição do indivíduo em não considerar a actividade como interessante ou relevante.

Sendo claro que a Ciência comunitária evoluirá sempre à frente da Ciência individual, uma não pode anular a outra, sob pena de se colocar toda em risco.

Interessa que as hipóteses alternativas que se colocam em História muito se devem à oclusão, condicionamento de dados e processos, à maioria dos cidadãos. A maioria dos historiadores conformam-se à posição de simples burocratas, que chancelam certos documentos ou teorias como verdadeiras, e outras como falsas, na maioria dos casos "porque sim"... nem sequer se preocupando com a total palhaçada de contradições que apresentam, porque nem têm que ser lógicos, nem sequer têm que ter bom senso. Têm apenas que se conformar à função burocrática instituída.

Aquilo que era considerado como dados indiscutíveis há 500 anos atrás, arregimentava a Bíblia e os seus crentes. Hoje não é considerado Ciência, mas a questão é saber se aquilo que é hoje indiscutível pela Ciência comunitária, não estará também em risco de cair pelos seus pés de barro, sendo claro que a História foi baseada numa geopolítica de interesses locais, circunstanciais, que se foram cimentando como interesses mesquinhos.

Quando a análise histórica é feita com essas lentes distorcidas, é claro que o que vemos são apenas sombras do passado, coloridas em tons cor-de-rosa e negros, dependendo da perspectiva.

Não há dúvida que o futuro, assumindo uma evolução, caminhará no sentido de eliminar todos esses traços difusos e confusos, mas teremos a certeza que serão repostos por traços claros artificiais, pintados por uma Ciência artística, ao estilo da NASA, ou que serão repostos por traços genuínos?
É nesse ponto que será imprescindível a evolução da Ciência individual, livre, para que não fique sujeita à fé em ídolos dourados, agora pintados como "grandes cientistas", que cimentam uma nova religião comunitária.

Tudo isto parece um "wishful thinking", mas é mais que isso.
Todo o avanço científico, uma vez presente, tanto determina o futuro, como também clarifica o passado. É indiferente terem sido bem ou mal classificadas as datações pelo processo do Carbono 14. O que interessa é que a descoberta do decaimento radioactivo condicionou o passado para um nível de certeza, quando antes estava num nível de incerteza. Haveria milhares de possibilidades que seriam possíveis sem essa descoberta, que passaram a ser impossíveis pela descoberta.
O futuro condicionou o passado. 
A cada progresso científico que façamos, mais ficará determinado o passado. 
Chegará ao ponto em que as ouviremos as paredes falar, contar histórias que se julgavam para sempre confinadas, e perdidas no tempo. Será inútil caminhar no outro sentido, a menos que se pretenda deixar a pegada no local do crime.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

As moedas de Cartago e de Cirene encontradas na ilha do Corvo em 1749

Há mais de um mês, MBP deixou aqui num comentário um link para o seguinte artigo:


referindo, bem, a dificuldade de reportar que o DNA encontrado apontava para uma ligação directa a Portugal. Não deixam de ser antecessores europeus, ou ibéricos, mas o autor do estudo dizia a certa altura:
"most closely matches that of the sequence of a particular modern day individual from Portugal".

Como fenícios e cartagineses andaram pela península ibérica, tal não seria propriamente uma grande novidade, mas é complicado porque se tratava da primeira análise completa do haplogrupo mitocondrial (... first complete mitochondrial genome of a 2500-year-old Phoenician dubbed the "Young Man of Byrsa"). Portanto dir-se-ia que foi azar... até porque por volta de 500 a.C. não é conhecida grande presença cartaginesa, ou fenícia, que se concentrou posteriormente (uns 3 séculos depois) pela região de Cadiz, e na região do Algarve e Alentejo. 

No entanto, se atendermos ao que dizia Bernardo de Brito, havia grande colaboração entre os habitantes da península ibérica e os fenícios, ao ponto dos ibéricos terem ido ajudar nos cercos da cidade de Tiro, quer por Nabucodonosor, quer por Alexandre Magno.

Dado o material encontrado, será de considerar um pouco mais que isso... e pensar que as cidades fenícias, ou mesmo cartaginesas ou cirenaicas, fossem cidades fundadas, ou largamente participadas, por uma comunidade ibérica. Afinal a posição da cidade de Cadiz seria muito mais estratégica no controlo da navegação no Mediterrâneo, do que as cidades fenícias, que pouco mais seriam que praças-forte no meio de território "inimigo", dada a pressão constante que sofriam por mesopotâmicos, egípcios, ou hititas.

Acresce a isto a estranha descoberta de moedas que terá ocorrido em 1749 na ilha do Corvo, que é descrita da seguinte forma (cf. Moedas fenícias no Corvo - Enciclopedia Açores XXI):
Em 1761, o numismata suéco Johann Frans Podolyn relata o seguinte: "No mês de Novembro de 1749, após alguns dias de ventos tempestuosos de oeste, que puseram a descoberto parte dos alicerces de um edifício em ruínas na costa da Ilha do Corvo, apareceu uma vasilha de barro negro, quebrada que continha um grande número de moedas, as quais, juntamente com a vasilha, foram levadas a um convento" [ seria o Convento de São Boaventura, em Santa Cruz das Flores? ], "onde as moedas foram repartidas por pessoas curiosas residentes na ilha. Algumas dessas moedas foram enviadas para Lisboa e dali mais tarde remetidas ao padre Enrique Flórez, em Madrid. O número de moedas contidas na vasilha não se conhece e nem quantas foram mandadas de Lisboa, mas a Madrid chegaram 9 (nove) moedas. ... O padre Flórez fez-me presente destas moedas quando estive em Madrid em 1761, e disse-me que no todo do achado havia apenas moedas destas nove variedades." (Achados Arqueológicos nos Açores, José Agostinho, em Açoreana, Vol. 4, fasc. 1, 1946, pág. 101-2 - O padre Enrique Flórez de Setién y Huidobro, (1701-1773), foi um conhecido historiador e numismata espanhol que pertenceu em vida à Ordem de Santo Agostinho.)
Num artigo da APIA encontra-se a seguinte imagem dessas moedas: 
:

Notamos que as imagens condizem com o tipo de moedas cartaginesas, algumas evidenciando um cavalo, conforme uma que aqui já tinhamos colocado. As moedas também seriam de Cirene (ou Curana), uma cidade grega perto de Tripoli na Líbia.
Xéquel de Cartago com um cavalo.

Já tinhamos falado da estátua equestre do "Cavaleiro do Corvo", e tendo ontem abordado o tema Mustang (sobre os cavalos americanos), surge à interrogação a razão do uso do cavalo como símbolo, por parte dos fenícios ou cartagineses. Aliás, se Aníbal ficou conhecido na História, foi por conduzir um exército com uma forte componente de elefantes, através dos Alpes, até Roma.
Parece um pouco estranho que um povo, conhecido especialmente pela sua capacidade naval, usasse o cavalo como símbolo. No caso de Cartago, dada a ligação que Virgílio estabeleceu entre Eneias e Dido, poderia referir esse elo perdido com Tróia? 

Por outro lado, haveria a possibilidade real dos fenícios ou cartagineses terem efectuado viagens transatlânticas, a que Humboldt deu especial crédito, tendo reconhecido os achados na ilha do Corvo - a estátua e as moedas. Ora, conforme mencionámos no texto sobre o Mustang, não é de excluir uma possibilidade comercial fenícia de importação de superiores raças de cavalos, que as velas e o vento Zéfiro permitiam ligar à América.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Nebulosidades auditivas (62)

Porque todos os outros têm ouvidos a menos. (António Sérgio, Som da Frente, Rádio Comercial)

Faleceu hoje Ricardo Camacho, um dos principais elementos dos Sétima Legião, e produtor de vários outros projectos (António Variações, Xutos e Pontapés, etc.)

No princípio dos anos 80, quando começavam a aparecer as bandas rock nacionais em catadupa, os Sétima Legião foram o principal projecto alternativo, com uma sonoridade claramente influenciada pelos Joy Division / New Order, mas indo também buscar influências tradicionais - neste tema a gaita de foles e o bombo. Essas influências tradicionais seriam depois exploradas pelos Madredeus, que alcançaram um significativo sucesso internacional.

"Pois que Deus assim o quis" - Sétima Legião - do álbum "A um deus desconhecido".
(concerto 30 anos - 2012, Coliseu de Lisboa)

Talvez porque o ponto fraco dos Sétima Legião fosse o vocalista (um caso em que usar a palavra cantor seria um manifesto exagero), Ricardo Camacho apontou como favorito este tema instrumental.
Logo a seguir, podemos ver Ricardo Camacho dedicar o tema "Glória" a António Sérgio, falecido uns anos antes. Para benefício do ouvinte, fica a voz em versão de estúdio.

Glória - Sétima Legião - A um deus desconhecido (1982)
A morte não te há-de matar, nem sorte haverá de eu viver, sem amar sem te ter, sem saber se rezar
Amor oxalá seja amar, ter prazer sem poder nem sequer te tocar
Os deuses não te hão-de levar, sem que eu der a mão p'ra ser par, sermos dois a partir, e depois a voltar
Não vais-me deixar sem o céu, ser o chão onde vão se deitar os mortais
E a Glória será não esquecer, memória de tanto te querer, sem razão meu amor, com paixão sem morrer
Talvez ao luar, possas ver o olhar, que lembrar fez nascer Português