quarta-feira, 6 de junho de 2012

Like tears in rain

Estreia amanhã o novo filme de Ridley Scott, Prometheus
e aproveito para falar em Blade Runner, de 1982, um filme de referência no género de antecipação científica... colocada no ano 2019 em L.A. Começa por ser interessante verificar como a arquitectura de cidades de futuro ficou sempre muito aquém do imaginado, desde o princípio do Séc. XX. Encontramos esboços e construções de Corbusier nos anos 1930 mais futuristas do que algumas que existem hoje. O progresso que se antevia generalizado à sociedade acabou por ser muito limitado, e hoje é curioso ver que a maioria das cidades dos EUA exibem padrões parecendo que cristalizaram nos anos 1950-60... até mesmo pela persistência de algum parque automóvel antigo, nomeadamente os autocarros escolares.
A antevisão de 2019 no filme de 1982 não era nada que chocasse muito à época, ou seja não parecia nenhum completo absurdo. Talvez deva chocar mais ver como era errada a antevisão do desenvolvimento tecnológico ao ignorar as condicionantes económicas que já se iam cristalizando, e que serviram de pretexto para hibernar a exploração espacial, e praticamente toda a tecnologia... à excepção da comunicação.
A maioria dos filmes com antevisões científicas levava para sociedades distópicas, com um poder centralizado quase ditatorial, muitas vezes resultantes da implantação de grandes monopólios privados. Como a sociedade ocidental manteve um grau de liberdade bastante razoável, a falha na previsão de evolução rápida também se justifica pelo menor grau de centralismo no poder. Porém, curiosamente, seria impensável fazer hoje um filme futurista em que ciborgues fumassem descontraídamente, lembrando como nos anos 1980 ainda não se previa a paranóia anti-tabagista (aliás, qualquer dia, é preciso uma autorização especial para poder ver os filmes de Humphrey Bogart, onde o fumo era uma constante, como no caso do Maltese Falcon).

O filme Blade Runner, como excelente filme de ficção científica, acompanhado por uma excelente banda sonora de Vangelis, aproveita para incorporar algumas questões filosóficas. Os ciborgues fabricados tinham memórias falsas de uma juventude que não tinham tido, e debatiam-se com o problema de saberem a data exacta da sua desactivação/morte.

O problema do desperdício de informação na morte, que tornava a sua vida inútil, é caracterizado por uma notável frase: "all those moments will be lost in time like tears in rain... time to die", e a pomba é solta sem mensagem.

A falta de sentido da vida era aqui colocada na efemeridade da vivência e na definitiva perda das memórias.
A importância da contribuição do conhecimento do indivíduo veio associada ao culto da personalidade, com a vã promessa de alguma imortalidade histórica. Isso tornou-se tanto mais notório quanto a sociedade vendeu a imagem de isenção, de não ocultação, de dar o devido epitáfio a quem "merecia" destaque.
Porém, tudo isso acaba por ruir como um castelo de cartas quando o indivíduo deixa de confiar na sociedade. Quando a sociedade que se constrói necessita da ocultação, pratica a ocultação arbitrariamente, então os personagens vão sendo apagados das fotografias quando necessário. Nem precisam de ser apagados, são remetidos para a ausência de atenção... são personagens de livros sem leitores.
Nessa situação, o contributo individual deixa de fazer sentido como legado de memória... e as memórias ou o reconhecimento deixam de ser importantes. Um panteão de falsidades será substituído por outro, cada vencedor inventa nova história... e curiosamente, a única esperança de vã glória dos falsários, ocultados ou difamados, será poderem vir a ser redescobertos por uma história verdadeira.
Ou seja, a importância do legado, ou do reconhecimento individual, não faz qualquer sentido numa sociedade falsária. O legado só tem sentido histórico tendo em vista a recuperação da verdade... podem ser lágrimas na chuva, mas acumulam acusando a presença de sal. Nenhuma ilusão é eterna, pois só vive nos seus mentores, a verdade será imutável, por ser partilhada, para além dos indivíduos. A verdade tem um depósito seguro... o tempo, e a impossibilidade de voltar atrás. Se isso fosse possível, muitos seriam aqueles que tentariam apagar as suas acções anteriores, aparecendo como imaculados... porém, a ser possível visitar o passado, será já numa qualidade diferente, de não intervenientes, condenados a observadores.

A outra questão interessante no filme era a corrupção de memórias. Os indivíduos nasciam adultos com falsas memórias de infância e juventude. 
Sobre a memória temos uma noção de acesso limitado.
Os sonhos nada mais são que memórias que aparecem "do nada" quando estamos já acordados, e que reportamos ao período em que dormimos. Isso é natural quando acordamos com essas memórias, e é menos natural quando algum pormenor nos faz lembrar só posteriormente do sonho ocorrido. Neste última situação, é como se um pedaço de memória, antes desconhecida, tivesse invadido o pensamento. O olfacto é especialmente interessante como agente que despoleta memórias antigas, quase perdidas. As certezas quanto ao que somos e o que conseguimos fazer, transformam-se em maiores incertezas se pensarmos naquilo que controlamos verdadeiramente. A memória acompanha-nos, mas não é por irmos perdendo parte dela, ou até por sermos iludidos por ela, que perdemos o traço unificador que nos define no presente.

É certo que parte de nós morre a cada instante, de forma irrecuperável... há dias, meses, talvez até anos inteiros que não voltaremos a lembrar. Não nos preocupamos muito com isso. O sentido de preservação é tido sempre na nossa potencialidade de continuar a existir com as memórias a que vamos conseguindo aceder hoje. O "eu" que fomos na nossa infância, juventude, esse deixou de existir, morreu... é uma vaga lembrança onde se insere também a lembrança daqueles que partilharam connosco esses momentos. 
O tempo tem a desvantagem de não eternizar os momentos bons, mas também a vantagem de não eternizar os momentos maus. E ainda, a nossa exigência anti-monotonia dificilmente ficaria eternamente satisfeita... o "viver feliz para sempre" termina muitas histórias infantis, mas nunca é especificado. O paraíso... é "para"-"iso", ou seja, vai para além da isomorfia, da monotonia de uma equidade absoluta, mas tende para ela no somatório, e é natural que quem exagere num sentido espere por reacção idêntica no sentido oposto. Aqui, a filosofia da linha do meio, própria do budismo, parece ser a mais sensata, mas não deve levar à estagnação... é apenas uma boa plataforma de estabilidade.

Sobre a inteligência artificial, própria aos ciborgues do filme, nada impede a priori essa possibilidade.
A nossa inteligência manifesta-se sobre uma plataforma biológica, complexa, em que o raciocínio emerge da experiência. Aliás, a própria linguagem emerge de uma sucessiva experimentação, com associação entre objectos e palavras... é assim que as crianças aprendem a falar. A plataforma biológica não tem que ser a única onde é possível emergir raciocínio, e há algumas experiências computacionais, com redes neuronais, que visam simular processos semelhantes. A capacidade de executar tarefas complexas, de índole automática, não deve ser confundida com inteligência inerente... é claro que o Deep Blue pode ganhar ao Kasparov em xadrez, mas se mudarmos um pouco as regras, o Deep Blue precisaria de um programador humano para poder jogar com Kasparov. Há raciocínio adaptado a certas tarefas que levam a automatismos, mas a inteligência revela-se pela flexibilidade e adaptação do raciocínio a diferentes problemas, enquanto que a inteligência especializada muitas vezes pode resumir-se a automatismos simuláveis computacionalmente. O ponto principal é o executante ter noção de si, ver-se enquanto objecto de análise... e isso parece longe de ser possível numa máquina finita. A razão é simples... a capacidade de nos observamos a nós próprios coloca-nos num plano superior de observação, como se nos desligássemos do corpo observador, e daí emerge uma noção que transcende o corpo... a noção de alma.
E talvez seja melhor ficar por aqui...

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