domingo, 21 de junho de 2020

Nebulosidades auditivas (83)

Em Março de 2013 trouxe aqui dois vídeos.
  • Massive Attack - Unfinished Sympathy (1991)
  • The Verve - Bitter Sweet Symphony (1997)
Associei-os da forma óbvia que estão associados. Os Verve fizeram em Londres uma contra-parte do vídeo dos Massive Attack que tinha sido filmado em Los Angeles.
Ambos os vídeos se tornaram clássicos, e é assim quase obrigatório, juntar um ao outro.

Foi um ano complicado, e o contexto em que os vídeos aqui foram trazidos é pessoal, mas interessará deixar escrito o que não escrevi, uma vez que provavelmente nem sequer passará pela cabeça de ninguém, vê-lo desta forma.

Shara Nelson, a cantora que os Massive Attack trouxeram para esta faixa, caiu bem para um monólogo de Gaia... sim, estou a falar da mítica deusa do panteão greco-romano.

O vídeo começa com duas esferas a rolar numa mão, e todo o vídeo, filmado sem edição, irá ter apenas duas personagens. Quem canta, e quem escuta! - Gaia e Cronos nas esferas da acção.
Tudo o resto são estilosos canídeos cegos, pseudo-Cerberus, pseudo-cérebros, que nada vêem.
Gaia, fazendo o filme molda o universo que apresenta a mensagem.
Cronos, quem vê, domina o tempo da acção.


Nada mais interessa, porque cada detalhe que ali está são os próprios que o colocaram.
As esferas geraram um aparente mundo caótico, um Caos, de onde sai Gaia/Terra, com uma ordem e direcção bem definidas. Ao virar, logo se vê (0:38) Daddy G nome apropriado para um pai, Urano/Céu, que mostra montras, monstras, ao filho (Cronos). Gaia começa a cantar...
I know that I've imagined love before, and how it could be with you.
Really hurt me, baby, really cut me, baby... How can you have a day without a night?
You're the book that I have opened, and now I've got to know much more.
Resume-se aqui o problema de Gaia, atormentada pela impossibilidade de ver o seu interior, onde Urano escondera os seus filhos disformes, Ciclopes. Gaia sofre como um olho que não consegue ver dentro de si. Cronos tem a possibilidade de um corte temporal, facultado por Gaia, com que dilacera a ordem de Urano, fazendo nascer Afrodite.
A ordem temporal permite um futuro, mas nesse corte condena o passado à escuridão.
Daí a pergunta repetida - como pode haver um dia sem noite?
The curiousness of your potential kiss, has got my mind and body aching...
Really hurt me, baby, really cut me, baby...How can you have a day without a night?
You're the book that I have opened, and now I've got to know much more.
No cruzamento sai Daddy G, e entra 3D (2:15, ao telefone) que seguirá Shara até ao fim, enquanto indiferente ao contexto, ela repete:
Like a soul without a mind, in a body without a heart, I'm missing every part!
A estrutura universal sente a alma, mas não o nexo, sente o corpo, mas não o seu motor.
Zeus, filho de Cronos, irá remeter o próprio pai ao passado, com a ajuda de Gaia.
Gaia abriu o livro do tempo com Cronos, mas este lhe não revelou respostas.

O vídeo de Billie Walsh não será sobre nada disto. Interessou a dificuldade técnica de conseguir a acção com uma única filmagem e sem edição. Mantém uma notável sincronia com o ritmo da canção, e com o ritmo da cidade que desperta, fabricado o momento com a realidade matinal quotidiana (é manhã, porque as sombras são alongadas). Para além de documentar o quotidiano de um bairro hispânico, apresenta o drama amoroso da personagem principal, que assim está alheada do que se passa em seu redor. A típica trivialidade intelectual que, como um zero cheio de ricocós, não deixa de ser um zero, mas não deixa de ter os ricocós. 

Segue-se o vídeo-resposta de W. Stern, que sendo posterior, parece menos sofisticado e cuidado.
Ao contrário de Gaia, que evita naturalmente o contacto com os mortais, este Hermes, manifestação expectável de Cronos, tem também um caminho bem definido, e ao não evitar o confronto com quem o perturba, torna a obsessão no caminho que toma como superlativa à direcção que segue.

Os Verve usaram aqui uma melodia que pertencia aos Rolling Stones, e por isso vão sofrer diversos processos que reduzem além do aceitável a efectiva contribuição decisiva que tiveram no tema.

O caminho que começa, qual tiro de partida, ensaiado com uma cuidada descuidada travessia da rua, é ilustrado com a reacção incrédula dos transeuntes perante a obstinação de Ashcroft em imitar a certeza num caminho que corta quem se lhe atravessa, ao ponto de saltar um pequeno carro, mas vendo-se o descuido de colocar à espera (2:30) a rapariga que procurará exibir-se (2:38). 
A contrariedade no caminho de Ashcroft será o Jaguar, que o força a parar e a ver-se a si mesmo na reflexão, quando perscruta o seu interior. O sentido final ocorre na junção dos restantes elementos da banda, já que todo o sentido é na oposição ao vídeo anterior, enquanto bando de banda.
Cause it's a bittersweet symphony this life
Trying to make ends meet, (trying to find somebody) then you die.
I'll take you down the only road I've ever been down
You know the one that takes you to the places where all the veins meet.
...
No change, I can't change, I can't change, I can't change,
But I'm here in my mold, I am here in my mold.
But I'm a million different people from one day to the next
I can't change my mold, no, no, no...
...
Well I never pray, but tonight I'm on my knees.
I need to hear some sounds that recognize the pain in me.
I let the melody shine, let it cleanse my mind, I feel free now.
But the airwaves are clean and there's nobody singing to me now.
Em 2013 inverti a ordem, mas a ordem é mesmo esta.
Quando Gaia canta, já viu a esperada resposta que Cronos lhe dará depois, na forma de Hermes.
Por isso mesmo, as perguntas mantinham-se.
As partes de Gaia espalham-se pelos tempos, e a sua integridade foi tanto maior enquanto o futuro foi projecção antecipada do passado. A cantoria de Ashcroft já a ouvira mil vezes a tantos outros bardos consumidos pelos seus tormentos, procurando um caminho que levasse à reunião de todos os veios. Nenhum desconforto alheio a faria parar, enquanto carregasse em si a íntegra dos desconfortos. 
O que talvez não antecipasse é que a solução do seu problema passaria pela sua dissolução, e daí um lamento que perdurará no eco dos tempos:
Like a soul without a mind, in a body without a heart, I'm missing every part!
O que Hermes explica é que, reduzido à condição humana, não pode evitar o confronto, e o primeiro tombo será o dela, ensimesmada, e alheia ao caminho alheio. Hermes tanto salta por cima da maquinação com que lhe bloqueou o caminho, como a reduz à insignificância a sua tentativa de exibição/sedução. Todos protestaram, riram ou ignoraram, mas nem mesmo a paragem em que se confrontou consigo mesmo, o tirou desse caminho em que, como molde, serve por igual a milhões de pessoas diferentes, em tempos diferentes.

O que Cronos explicou, através de Hermes, e que no final fez Gaia virar a sua direcção, foi que a igualdade não é possível ao mesmo tempo, mas quando o tempo muda, colocando o opressor no lugar do oprimido, pois aí o opressor perde o pio da cantoria, e passará a ter outro cuidado futuro.


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