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sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Fonte da Vida

Questão paralela à pintura Fons Vitae, é a própria noção do sangue de Cristo como fonte de vida.
Trata-se de uma noção teológica alegórica, de transubstanciação, enquanto identificação cristã do corpo ao pão e do sangue ao vinho, na cerimónia católica da eucaristia (do grego, boa graça).

Nesta circunstância, para além da boa graça, não encontramos nada mais de substantivo. A fonte de vida existia desde a "Criação", e manteve-se inalterada, sob os mesmos processos. Neste mundo, para além do ritual social, não existe diferença entre baptizado e não baptizado.
Os apóstolos que beberam do cálice não apenas figurativamente, mas concretamente, com Jesus Cristo, não tiveram uma vida facilitada, sofrendo mortes igualmente cruéis e impiedosas.
Como a fé não deve nada à lógica, o Graal, enquanto simples taça da Última Ceia, não deixou de ser procurado como objecto com poderes transcendentes, apesar de nada ter ajudado à vida terrena dos apóstolos que com Cristo cearam.

A ciência, ou filosofia, são neste assunto igualmente pouco ou nada claras, com a desvantagem de não usarem nenhuma boa graça, mas requererem igualmente uma fé - a fé de que as definições que têm são as "melhores possíveis"...

Uma das características engraçadas neste aspecto é que não há normalmente uma oposição entre vida e morte, porque há ainda uma enorme classe de entidades que, como não experimentaram vida, não se pode dizer também que estejam mortas...

Começamos com uma pequena observação.
Suponhamos que a partir de uma data vemos um animal de estimação desenvolver uma rotina, sempre a mesma rotina, sem qualquer alteração notada de dia para dia. O dono deixa comida, o animal come, de seguida faz sempre os mesmos movimentos, e aguarda o dia seguinte, sem esboçar a mínima interacção com o dono ou com o exterior. 
Nesta situação, se o animal não exibe a mínima imprevisibilidade, é o que se poderá dizer de um "morto-vivo". Não significa isto que esteja morto, porque os processos biológicos podem manter-se sem alteração. Simplesmente, se não tem qualquer interacção com o exterior, que não seja assegurar automaticamente a sua sobrevivência, deverá considerar-se que o seu cérebro está ainda neste mundo?
Isto é bastante diferente do que se passa com os humanos, porque sob vigilância os humanos podem adoptar uma estratégia de sobrevivência passiva, em que a sua interacção com os outros seja reduzida ao mínimo, quase a procedimentos automáticos.
Simplesmente não é crível que um animal opte por uma atitude dessas. O que pode acontecer em certas circunstâncias agrestes é que alguns animais "definham" antecipando quase um suicídio.

O que aqui pretendemos associar é a vida, ou a alma da vida, a uma certa imprevisibilidade.

Acontece que há muitos fenómenos imprevisíveis a que não associamos a noção de vida.
Os gregos identificavam Zeus na imprevisibilidade dos fenómenos atmosféricos. De certa forma, era como se o tempo tivesse uma vontade própria, que se manifestava climaticamente. Acontece que essas transformações climáticas, apesar de serem na sua globalidade ainda completamente imprevisíveis, obedecem a algumas leis físicas, estando num limbo entre uma possível previsibilidade futura e a imprevisibilidade.

Estão a ser criados programas de computador, ou robots, que tentam simular o comportamento de pequenos animais. Se esses robots realizam tarefas programadas, então são normalmente previsíveis, ao fim de um certo número de observações. A partir do instante em que antevemos as acções desses robots, deixamos de considerá-los como novidade, e consideraremos a sua acção com entendemos a accão de tantos programas automáticos - como uma vantagem ou como uma praga.
Poderá haver uma parte aleatória, em que a escolha entre possíveis decisões pode ser fruto de um qualquer acaso, contextual ou interno. Mas ainda assim, essa aleatoriedade corresponderá mais a um aspecto desgarrado, a que falta uma continuidade visível, por exemplo, uma empatia - que não é necessariamente constante, nem é manifestada sempre da mesma forma.

Podemos ver o caso mais simples, ou mais complicado... das plantas. 
Não é difícil encontrar programas que simulem produções de colheitas, um pouco mais sofisticados que o Farmville, podendo aparentemente oferecer o mesmo tipo de previsibilidade ou imprevisibilidade que se espera no desenvolvimento de plantas. Só que aí estamos a considerar um outro tipo de vida, a vida vegetal, que é diferente quando em caso de laboratório - em que está praticamente em condições ideais, estanque, e imune a influências exteriores. 
Essa vida vegetal deve ser considerada como um todo, e aí perderá muito do seu aspecto de previsibilidade, entrando no conjunto de interacções entre todos os seres vivos no planeta Terra. Esse grande organismo que, à maneira dos antigos gregos, é muitas vezes chamado Gaia, é de modelação impossível (ou praticamente impossível, mesmo que consideremos apenas a parte vegetal).

A fonte da vida reside numa imprevisibilidade, mas não numa imprevisibilidade qualquer, é requerido que essa imprevisibilidade se manifeste em empatia com o ambiente circundante, com o mundo.

De onde surge a imprevisibilidade?
Há diversas situações em que a probabilidade de sair um resultado ou outro é considerada igual.
Não interessa que seja exactamente igual, interessa que os observadores não têm hipótese de antecipar o resultado que vai sair (por exemplo, quais são as bolas que saem no Euromilhões, se admitirmos que não é um esquema montado!).
Quando aquilo que permite determinar um resultado e não outro está fora da previsibilidade possível, é denominado imprevisível.
Porém quando dizemos aqui que está fora da previsibilidade possível, isso significa que não é observável neste universo. Acredite-se ou não que o resultado das bolas que saem resulta das micro ou nano interacções moleculares, atómicas, da corrente de ar, da tinta das bolas, ou do que se quiser juntar, isso é apenas fé de querer acreditar em algo.
Na prática, resultados imprevisíveis não estão dentro do universo a que temos acesso.
De resto, é tão válido usar a palavra sorte, a palavra milagre, ou qualquer outra.

Somos pois forçados a concluir que há um universo não observável que determina uma grande parte das ocorrências observadas neste universo. Isto não é nada de novo, e as teorias físicas admitiram-no a partir do momento em que começaram a incluir probabilidades, ou até "princípios de incerteza".

Um outro aspecto em que o espírito humano é forçado a admitir a existência de não observáveis, é a partir do momento em que constata que há ideias que não têm origem no mundo material. Isto é uma dialética antiga, entre o mundo material e o mundo espiritual, mas a ciência foi de tal forma envolvida no aspecto material que se esqueceu que as ideias que usava não estavam soterradas em nenhum baú debaixo de terra. Continua nessa senda insana, agora pensando que as ideias estão num qualquer baú escondido dentro do cérebro.

Na Antiguidade havia uma boa graça para a origem das ideias, atribuindo-as a musas inspiradoras, reconhecendo que, para além do esforço, havia uma imprevisibilidade que permitiria ter boas ou más ideias (não há propriamente um antónimo de musa, mas não deixou de estar implícita a influência de mocreias ou diabretes maus conselheiros).

Fonte de vida
Em resumo, todos os processos que possam previstos, ou simulados computacionalmente por nós, não são fontes de vida. Não haverá nada na vida que possa ser reduzido a um pequeno conjunto de instruções operante. Quando deduzimos um determinado conjunto de "leis da natureza", a vida está no grande universo que escapa à modelação por essas "leis".
Podemos antecipar que processos definidos por simples leis assumem uma complexidade tão grande que os torna impossíveis de prever, e que isso não invalidaria que a vida não fosse resultado delas... não invalidaria, mas também não validaria, pelo que se trataria de uma afirmação de fé, sem outro significado objectivo. O significado objectivo seria de novo um equivalente à imprevisibilidade.

Conforme dissémos há uns tempos, a vida propagou-se como um fogo, resultante de uma chama que evoluiu até ao incêndio presente. Ou seja, até aqui a vida não tem outra fonte que não seja a própria vida! Não nascem seres vivos de entes inanimados, mesmo que nos limites da ciência se produza vida com os progenitores já mortos.
Nesse sentido, mesmo sendo uma imprevisibilidade, foi uma imprevisibilidade singular.
Isto é uma questão interessante, porque tal como se acha que deveriam existir milhares de planetas habitados, também não há aparente razão para a vida surgir de um único ser primordial (denominado LUCA ou LUA - last universal ancestor), mas assim parece ter acontecido. Será complicado pensar que somos primos afastados da mosca ou do pinheiro no parque, mas o DNA exibe uma mesma raiz primordial.

A questão é também saber se seria necessário haver mais que uma raiz comum.
Do ponto de vista bioquímico podemos pensar nas múltiplas diferenças que se estabeleceriam com raízes de vida diferentes, feitas de outros compostos químicos. Porém, do ponto de vista prático, sem ser uma outra particularidade física, o que de substantivamente novo poderia aparecer?
Será que nos sentimos mais próximos de um fungo do que de uma alga ou uma esponja?
Uma enorme multiplicidade de formas vivas foi possível com o nosso DNA, a ponto de surpreender a nossa imaginação, pelo que até hipotéticos seres vivos de outros planetas só surpreenderiam mais pela dimensão do que pela forma ou aspecto.

Ao contrário, a raiz comum traz um factor de ligação - uma mesma origem biológica, uma mesma fonte. Essa mesma fonte terá evoluído de acordo com um princípio antrópico, que não será apenas uma etapa evolutiva, mas sim a própria finalidade da evolução - produzir uma inteligência capaz de entender o universo que a criou. Ou seja, essa evolução permitiu que o sangue saísse de um coração tendo em vista alimentar uma cabeça.
Tudo porque, sem essa cabeça de humanidade, o universo não poderia ver-se a si mesmo.

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