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domingo, 22 de novembro de 2015

Gaios e Gaiatos

Estreou ontem(*) o último filme da saga "Jogos da Fome", e o notável cartaz publicitário não deixou de fazer lembrar uma pose de Diana, como a estátua feita por Saint-Gaudens, que esteve no topo do edifício do Madison Square Garden, no início do Séc. XX.


Para além de todo o desconto que se devem dar a filmes que visam plateias de gaiatos, há por vezes algumas informações que são transmitidas, colocando o peso da ficção como ilustração de outra realidade.

O nome "Jogos da Fome", tradução literal de "Hunger Games", recupera uma tradição de filmes futuristas que viam uma evolução para sociedade distópica... normalmente após um certo evento global devastador.

O que é curioso é que este modelo acaba depois por levar para uma concepção de sociedade medieval, um tempo de príncipes e princesas, reis ou imperadores, que nunca deixou de preencher o imaginário de histórias infantis.
Tanto é assim que, como armas de eleição, vai-se recuperar a mística de armas antigas como a espada ou o sabre (que passou a ser um sabre de luz, de laser, na saga Star Wars), o arco e a flecha (convencionais neste filme), ou uma simples pistola... que apenas passa a disparar um laser, como em Star Trek. Também as naves espaciais requerem a destreza do piloto, tal como requeria um avião caça.
A razão é essencialmente evidenciar alguma destreza dos heróis no manuseamento de armas, porque não serve ao enredo de um herói ter um grande poder centrado num simples premir de um botão, ou pelo simples exercício de pensamento, como vimos no filme Lucy.

Interessa-me dar aqui relevo a uma pequena conversa entre a líder rebelde (Alma Coin, protagonizada pela actriz Julianne Moore) e o seu conselheiro (Plutarch Heavensbee, tomando o nome de Plutarco pelo falecido actor Phillipe Seymour Hoffman). Essa conversa é informativa e surpreende ser colocada num filme deste tipo:
- Quando a protagonista escapa da influência de ambos, fica combinado que tudo o que ela fizer será transmitido como fazendo parte de um plano do comando.

Ao poder interessa sempre manter nos súbditos a ideia de que tudo controlam, quando tudo lhes começa a escapar, assim como em sinal oposto, interessa passar a ideia de que nada controlam, quando efectivamente estão a controlar a situação. É neste jogo de ilusões que reside grande parte do seu poder...
Isto é uma actuação bem antiga, existente mesmo nos animais, que iludem a sua presença furtiva apanhando as presas desprevenidas, ou aparecendo como figuras ameaçadoras, quando na realidade estão frágeis. Normalmente não vemos é ambas as capacidades colocadas no mesmo animal.

A fome revolucionária
Estes filmes são interessantes como manipulação dos afectos dos espectadores. A pessoa é conduzida a colocar-se do lado da revolta contra o poder despótico da classe dominante, indignando-se com as suas aberrações e atrocidades. Coloca-se do lado da jovem e dos rebeldes, aceitando a contagem de vítimas que produz, como um mal necessário com vista a um bem maior.
Chegada ao conforto do lar, a mesma pessoa é conduzida a indignar-se contra quaisquer rebeldes que ataquem um poder que vêem como despotismo universal, chamando-lhes o nome que a chancela lhes quer dar.

Na França ocupada pela Alemanha nazi não havia actos de terrorismo, nem terroristas. Havia apenas resistentes, sabotagens, destruição de objectivos, vítimas colaterais, etc... Líderes como Samora Machel, passaram de turras, de terroristas, a respeitáveis presidentes, a símbolos de independência nacional dos respectivos países. Os franceses viam Kaddafi como um execrável terrorista, até que o pragmatismo da real politik os levou a múltiplos negócios lucrativos com o visionário líder árabe. Mas quando os ventos da Prima Vera árabe sopraram, voltaram a demonizar o personagem, o velho terrorista... e abateram-no de tão forma cruel que faria muitas falsas carpideiras rasgar as vestes de indignação, tivesse sido o executor o executado. Kaddafi deveria ter percebido a mudança de sabores quando passou a ser unânime escrever o seu nome como Gaddafi, banindo de vez o Kaddafi ou Qaddafi como versões alternativas. Se a ONU nomeara a sua filha, Ayesha Kaddafi, como "embaixadora da boa vontade" em 2009, depressa lhe retirou todas as honrarias em 2011, quando foi decretada a caça a toda a prole do ditador líbio.
Ah! Como é fácil manipular, e mudar rapidamente solidariedades e vontades... da "maralha" pela "maralha".

Os jogos da fome estão sinalizados em diversos distritos deste planeta. Abundância e desperdício de um lado, fome recorrente e sistemática noutro. Se não é pela guerra, a escassez vem pela ditadura económico-financeira, e o distrito africano só preocupa verdadeiramente as consciências internacionais quando se pode tornar num foco de transmissão de doenças contagiosas.

As migrações são travadas por muros, quando se ouve em documentários migrantes africanos suplicar: "apenas pedimos que nos adoptem e cuidem como adoptam e cuidam de um cão ou de um gato"... e fica isto à atenção do deputado do PAN, recentemente eleito.

E o espectador sabe de tudo isso, sabe de todas as contradições da real politik, mas aceitando o conforto passivo da sua posição, não deixa de torcer pela jovenzinha no filme, que defrontou com o seu arco e flecha o poder de uma sociedade despótica. Ao mesmo tempo condenará de seguida quaisquer atentados contra o poder que o sustenta, e aceitará restrições de liberdade para aumentar a sua segurança. Afinal há um sentimento que se desenvolve - o medo.

Antes que o leitor pense que tenho qualquer simpatia por acções rebeldes, sejam elas a do Distrito 13 contra o presidente Snow, ou quaisquer outras que visaram atacar uma distopia social, informo que isso é irrelevante. Nenhuma acção de força derrota uma ideia, mesmo que se aniquilem todos os adeptos com "bombardeamentos cirúrgicos", ou com "atentados simbólicos".
Só ideias derrotam ideias.

Uma ideia atacada pela força apenas se torna mais reseliente e, se enfraquecida no corpo, ficará adormecida, até reaparecer de novo na mente de outros, com maior intensidade e mais audaz no desafio. Os corpos que transportam as ideias são completamente irrelevantes para as ideias que se apoderaram das cabeças que os comandam.
É inútil ir ao dicionário procurar adjectivos sonantes para repudiar actos atrozes, querendo passar a mensagem de que nada justificaria certas acções, quando certas acções têm uma lógica e razão perfeitamente clara. Isso só serve para distinguir terroristas que têm protagonismo, de terroristas que o pretendem alcançar. Ambos tentam usar o medo, terror, como forma de condicionar as populações aos seus actos.
Quando uma pessoa está disposta a morrer por uma ideia, só há uma força capaz de o impedir - uma ideia que neutralize esse intuito. Não será o medo, porque esse foi perdido na disposição. Ao contrário, a ausência de medo é a principal força que têm contra uma população assustada.

Epílogo
Gaia, a mãe terra, tem duas formas muito simples de juntar os seres - uma é cruel, outra é o oposto, mas servem ambas o mesmo objectivo para educar gaios versus gaiatos:
- amor;
- temor.
Se a sociedade não evolui na forma de amor fraternal, então obrigatoriamente cairá numa evolução de temor crónico. Não vale a pena pensar em erguer muros, com vista ao isolamento. O temor não desaparecerá. Porque, não havendo entendimento e partilha, haverá desconfiança e medo. Por muito grande que seja a assimetria, é perfeitamente claro que os humanos não ficam descansados sabendo de uma evolução separada de outros. Se existisse uma população em Marte, mesmo que estivesse num grau de desenvolvimento inferior, haveria medo na Terra face à evolução para competição posterior. Portanto, o erguer de muros, é sempre um erguer de medos... porque o medo é o que serve para unir o que se quis separar recusando uma partilha fraterna. Em sentido contrário, as épocas em que o medo foi desaparecendo foram aquelas em que o contacto foi maior e houve uma partilha para um grande entendimento global.
Tudo isto é muito simplesmente lógica, fácil de entender, mas muito difícil de aceitar.
No entanto, há outra coisa com que temos que aprender a conviver... - com a burrice crónica!

______________
(*) Quando mencionei "ontem" referia o dia 20 de Novembro, conforme o cartaz, mas o texto só foi completado mais de um dia depois de ter sido iniciado.

Já agora, é interessante a escolha de 20 de Novembro, porque é o início do signo Sagitário, que é representado por um centauro com arco e flecha! Dificilmente será uma mera coincidência... embora haja sempre quem prefira considerá-lo.

2 comentários:

  1. John Malkovich and Robert Rodriguez Have Made A Movie No One Will See For 100 Years

    http://io9.com/john-malkovich-and-robert-rodriguez-have-made-a-movie-n-1743390289

    https://www.youtube.com/watch?v=T1ka20sR-o8

    Cpts

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    1. Interessante.
      Parece que o interesse sobre câmaras do tempo está a aumentar.
      - Agora, será que nos deixaram um filme de 1915 para nós vermos?
      - É bem possível, porque em 1915 não se sabia bem onde iria parar a 1ª Grande Guerra, e faria sentido definir uma ou mais cápsulas temporais.

      No entanto, apesar de ser apenas uma publicidade ao Cognac, também o brio de preservar existe pelo menos desde o tempo em que as bebidas alcoólicas foram preservadas em grandes adegas... não esquecendo que o símbolo das confrarias do vinho do Porto e similares, são exactamente os chapéus da moda do Infante D. Henrique e do seu cunhado borgonhês.

      Obrigado pela informação.
      Abraços

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