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sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Nebulosidades auditivas (94)

 A história do rapaz que corria, para poder correr.

O rapaz fugiu para os montes, correu durante horas, para lado algum, para lado nenhum.
Quem o perseguia? - Boa questão!, pensou, se o tivesse pensado.
Não, não o pensou. 
Não, o rapaz não fugia de nada, nem de ninguém.
A culpa de tudo isto é sua: - Sim, estou a falar consigo, caro leitor!

O rapaz fazia aquilo todos os dias, porque o podia fazer, porque o queria fazer.
Não procurava o topo de nenhum monte, nem nenhum lugar em particular. Não era um atleta, nem era vigilante ou mensageiro. Pior que isso, detestava correr. O calor, o suor que lhe escorria pela face, as pernas que começavam a doer, o coração batia forte, e a respiração era trôpega. Não sabia correr, nem queria saber.

Se pudesse, detestaria cada um dos leitores: - Sim, estou a falar de cada um de vós.
Não adianta parar de ler, a culpa permanecerá: - Recusaram continuar, negaram o futuro.

Chegado ao topo de um monte, ou apenas a meio, vergado pelo cansaço, o rapaz parava, até conseguir recompor-se. Depois, começava a andar, devagar, procurando ganhar forças, para correr de novo até ao palácio.
Sim, o rapaz morava num palácio, mas não era nenhum príncipe.

Assim que o viam ao longe, os camponeses começavam a saudá-lo, passavam a palavra, e pouco tempo depois chegavam os seus serviçais, sempre preocupados com saúde dele.
Ele mal tinha forças para falar, fazia apenas alguns sinais para se afastarem, enquanto recuperava do novo cansaço. Seguia depois a passo, completamente estourado, até entrar quase de rastos no palácio, acompanhado da mordomia que vinha sempre colocar-se ao seu serviço.

Era assim, todos os dias. 
De manhã, no quarto imperial virado a nascente, ia até à varanda e desfrutava da magnífica vista à sua frente, até que o Sol lhe aquecesse o rosto. Pouco depois de um esplendoroso pequeno-almoço, chegava o primeiro-ministro com despachos para assinar. Falavam brevemente, abertamente, e despediam-se quase sempre em grande amizade. 

Toda a gente à sua volta lhe parecia satisfeita, e feliz, de uma felicidade que ele nunca antes vira na cara das pessoas. É claro que tinha desconfiado, e por isso começou a correr, a fugir do palácio, para se certificar de que as coisas corriam tão bem, tão bem quanto lhe diziam. Quando aprendeu a bem cavalgar, afastou-se até 50 quilómetros, e tudo parecia acontecer efectivamente conforme lhe relatavam. As pessoas viviam melhor que nunca, havia abundância, e todo o reino parecia prosperar.

Depois da revolução, soubera que os nobres tinham sido presos, e arriscaram um final funesto, se não fosse a intervenção do seu pai, que era agora um dos ministros do reino. Evitava ter a família por perto, apenas tolerava o suficiente para os deixar satisfeitos. Tentaram casá-lo cedo, mas também aí deixou correr a situação o suficiente para não se envolver muito com ninguém. Estava naquele ponto em que vislumbrava o futuro, e o que parecia permitir a felicidade de quem o rodeava, era também aquilo que o iria prender definitivamente a uma vida que não lhe agradava.

Por isso, naqueles tempos, seria ele a pessoa mais apreciada e menos feliz num reino de pessoas felizes. 

Toda a gente conhece a história inicial, e dispensou de a continuar, porque a criança foi usada para um propósito adulto. Todos usaram a criança e nunca quiseram saber do que aconteceu depois. Não interessava! 
Aquela criança ficou parada no tempo, sem os leitores lhe terem dado hipótese de crescer. Não quiseram saber do seu futuro.
Usando as palavras que o rapaz confidenciou a uma das suas consortes:

- Quando a procissão real desfilava na rua, urrei "vai nú" para o meu pai, apontando para o imperador. O meu pai repetiu a frase, duas vezes, e as pessoas continuaram a repetir "vai nú"... como se ninguém tivesse visto antes! Como é isso possível? Só se estivessem todos enfeitiçados! 

E ao leitor, poderá interessar saber se o rapaz engravidou a consorte, e viveram felizes para sempre, mas a mim interessa fazer notar que o leitor nunca deixou a criança crescer. Nunca quiseram continuar as histórias começadas na vossa cabeça, e esperaram sempre que alguém lhes desse continuação. 
- Ah!, pois e tal... não se está mesmo a ver que a história só interessa como alegoria?
Não, não está! Quando a história é passada como uma meia-história, é passada como meia-verdade.
O mais natural numa situação dessas seria o pai dar-lhe um safanão e dizer "está calado".

Hans Christian Anderson disse que o rei prosseguiu como se nada estivesse a acontecer, de certa forma tal como o próprio Anderson fez como se nada tivesse acontecido, quando pegou nesta história do autor espanhol Don Juan Manuel, do Séc. XIII, e lhe tirou o desfecho original, em que a criança que tal coisa haveria de notar, seria um filho bastardo do imperador. Mas o que é que isso interessa, se esse próprio autor já tivesse ido buscar fábulas do tempo do escravo grego Esopo, tal como o fez ipsis verbis La Fontaine? - Não interessa nada!

Interessa que o rapaz, fosse ou não filho do imperador, ou rei, ficando famoso por ter denunciado a situação surreal, permitiria ao povo despir a sua cegueira social, e olhar sem panos para um imperador que se exibia orgulhosamente nú. Ora, a revelação que quiseram atribuir à criança, não era nenhuma propriedade sua, era um defeito congénito dos outros.
Como pode depois a criança se sentir bem, por nascer com alguma visão, se está num mundo de cegos?

Snow Patrol - Run (2005)

A situação "de quem quer acertar antes de tempo" é uma pena dupla ou tripla.
Primeiro, porque quando faz o prognóstico, está a remar contra a maré, normalmente isolado.
Segundo, porque quando acerta, os outros raramente aceitam a própria cegueira, e olham com maus olhos para alguém que, com razão, os acusou de ser cegos, antes do tempo. Nesse aspecto a cegueira nunca é uma visão, é apenas uma nova cegueira.
Terceiro, porque não é a sua visão que retira a cegueira dos outros, e é com isso que terá que viver, mesmo se acidentalmente todos os cegos o viessem a louvar.

Finalmente, como é claro, este texto não fala do leitor que está a ler, mas sim de todos os outros...

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