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domingo, 27 de março de 2016

Os pássaros (7) de Aristófanes

Como todo o processo de formação de grupos, na substituição de um poder antigo por um poder novo, quando se mantém a lógica da estrutura de poder, apenas mudam os nomes e os personagens, mantendo-se o resto como antes. O apelo de adesão ao novo poder é aqui ilustrado por Aristófanes com a vontade dos humanos passarem a ter designação de aves, mudando os seus nomes, afiliando-se no novo grupo... numa simples lógica de troca de poder entre "eles" e "nós".

Depois, como mais interessante, o líder do movimento rebelde acaba por ceder à lógica anterior, porque é aquela que a generalidade dos elementos do grupo se habituaram a ver como referência, e é assim a que emerge naturalmente. Pistétero contestando a hierarquia divina, acaba rapidamente por ser puxado e ficar deslumbrado pela sua posição de ditador na hierarquia das aves.

Afinal, o grupo só se define como tal se tiver uma estrutura, e quaisquer acções são definidas por uma cabeça... sem essa cabeça o grupo sente perder-se o propósito comum da estrutura, e vê aparecerem apenas manifestações caóticas de várias cabeças, sem uma ligação coordenada entre elas. A preservação da estrutura, parece exigir a preservação da cabeça, e mesmo que o propósito do grupo seja anular a necessidade de cabeça, rapidamente o instinto de preservação do grupo tende a fazer emergir uma cabeça, em nome do grupo, e contrariando o propósito do próprio grupo... foi assim que facilmente se viu emergir uma forte estrutura hierárquica em estruturas comunistas, que contestavam a anterior hierarquia. Ou foi ainda assim que a Igreja Católica, professando o cristianismo, acabou por definir uma ortodoxa estrutura hierárquica, com o intuito de prevalecer o grupo. Também por isso, os movimentos anárquicos foram sempre entendidos como simples utopias... afinal uma contradição de termos quando um grupo se define contra si mesmo.

No entanto, se é o caos que nos torna diferentes, é a racionalidade que estabelece uma base de igualdade. São as noções abstractas que permitem entender como iguais coisas que são completamente diferentes. O caos é uma manifestação passageira das diversas possibilidades, desejáveis e indesejáveis... mas tanto umas como outras têm que ser encaradas como possibilidades iguais numa racionalidade. A sua diferença ocorre apenas na frequência... há possibilidades mais frequentes, vistas como regras, e pouco frequentes, vistas como excepções. Num mundo em que a excepção é sobrevalorizada, inverte-se a regra natural... porque sobrevalorizando as excepções estamos simplesmente a desvalorizar o que estabilizou como regra.

Plutarco contava que Licurgo, o mítico fundador de Esparta, para evitar o valor dado ao ouro, enquanto material muito mais raro que o ferro, decidiu instituir que a moeda passasse a ser o ferro, sendo proibida a exibição de ouro, que era propriedade da cidade. Assim, a única forma de manifestar riqueza perante os concidadãos seria praticamente acumular enormes quantidades de ferro, que era suficientemente abundante para não causar inveja.

E, é claro, o ponto principal será sempre esse... não ver a pobreza como antagónica à riqueza.
A pobreza é definida pela falta, a riqueza é definida pela posse.
Quem é rico, pode ser simultaneamente pobre, se o que tem não lhe for suficiente. 
Quem sistematicamente der valor às excepções, procurará sempre o que não tem, sobrevalorizando a falta relativamente à posse... e nesse aspecto permanecerá pobre, por mais que tenha.

A posse é definida pelo verbo "Ter", e a posse que a agricultura do neolítico sobrevalorizou foi a posse de Terra, no sentido "Ter-Ra", ter sol (Rá), ou ter solo... porque o solo precisava de sol para as colheitas.
Foi esse "ter terra" que gerou o "terror", "a dor da terra", ou o comportamento "a-terra-dor", simplesmente porque se perdeu a capacidade de partilha do que "a terra der"... e esta diferença entre dar e dor é muito significativa, tal como a diferença entre "tem: " e "tem: ".

A peça de Aristófanes introduz aqui a deusa Íris, que não nos espantará ter sido associada ao Arco-Íris, dado o nome que usamos... mas espantará mais saber que a par do espanhol, são as únicas línguas que mantiveram a tradição de associação à deusa grega - talvez porque os camponeses ibéricos fossem muito versados em mitologia grega, como se perceberá...

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As Aves 

(de Aristófanes)

continuação de (6)(5)(4)(3) , (2) , (1)
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(Iris ex Machina - uma máquina traz a deusa Íris, na forma de uma jovem alada)

Íris - Representação antiga e "moderna" (Pierre Guérin, 1811)

Pistétero: Ei!Tu! Tu aí, onde vais? Quieta, não te mexas mais... pára de voar. (Íris pára, e Pistétero prossegue) Quem és tu? De onde vens? Diz ao que vens!
Íris: Eu venho da morada dos deuses, no Olimpo.
Pistétero: Qual o teu nome, e o que é essa nave ou capacete? 
Íris: Sou Íris, a veloz.
Pistétero: Páralos ou Salamina? [navios mensageiros trirremes atenienses]
Íris: O que quer dizer?
Pistétero: Não há aqui um búteo alado que a apanhe? 
Íris: Apanhar-me? Mas que afronta é esta?
Pistétero: Ai de ti! 
Íris: Não entendo...

Pistétero: Por qual das portas passaste tu a muralha, miserável? 
Íris: Qual porta? Por Zeus, não faço ideia...
Pistétero: Vejam como ela troça de nós. Apresentaste-te ao oficial no comando dos gaios? Não respondes... Tens tu uma autorização com o selo das cegonhas?  
Íris: Devo estar a sonhar...
Pistétero: Obtiveste um?  
Íris: Você está louco?
Pistétero: Nenhum salvo conduto te foi dado por nenhum chefe dos pássaros?
Íris: Salvo-conduto? Ninguém me deu, seu pobre lunático...
Pistétero: Apareceu nesta cidade às escondidas, num reino entre o ar e a terra, onde é estranha.    
Íris: E que outro caminho devem então os deuses tomar?

Pistétero: Por Zeus, nada sei sobre isso, mas neste caminho não passam!    

Íris: Vejo agora uma desconsideração.
Pistétero: Nenhuma outra Íris seria tão justamente condenada à morte, se a tratássemos como mereces!    
Íris: Eu sou imortal.
Pistétero: Ainda assim, teria morrido. Doutra forma seria intolerável. Haveria de todo o Universo nos obedecer, e continuarem os deuses a contrariar-nos com a sua insolência. Não entendem que é a sua vez de se sujeitarem à lei do mais forte. Mas, diga-me, para onde voa?    
Íris: Eu? A mensageira de Zeus para a humanidade, vou dizer-lhes para sacrificarem bois e ovelhas nos altares, e para encherem as ruas com o fumo da carne gordurosa. 
Pistétero: De que deuses está falando?    
Íris: De que deuses? Ora, de nós mesmos, dos deuses do Céu.

Pistétero: Vós? Deuses? 

Íris: Haverá outros?
Pistétero: Os homens agora adoram as Aves como deuses, e é às Aves, por Zeus... que os homens devem sacrificar e não a Zeus. 

Íris (em tom trágico): Oh!... que idiota, que idiota! Não provoques a ira dos deuses, o que seria o teu fim e da tua raça. O raio de Zeus faria contigo o que fez com Licymnio [personagem numa tragédia de Eurípedes], consumindo o vosso corpo e os pórticos do palácio.

Pistétero: Chega! Agora cale-se e escute. Pensa que sou um Lídio ou um Frígio, e que me assusta com essas grandes ameaças? Saiba que se Zeus me irritar mais, irei à frente das minhas águias, equipadas com raios, e reduzirei a cinzas a vossa habitação, e a de Anfião. Enviarei mais de 600 Porfírios vestidos de peles de leopardo, para o céu, contra ele... e antigamente um único Porfírio já lhe trouxe males suficientes. Quanto a si, mensageira, se me irritar, levantarei as suas pernas, e mesmo sendo Íris, verás a erecção deste velho... três vezes mais forte que um aríete na proa de um navio.   

Íris: Desgraçado... Pois, que pereça com as suas palavras infames!

Pistétero: Então, não é veloz na fuga? Venha cá esticar as asas e aguarde pela trovoada! 
Íris: Se o meu pai não o punir, pondo fim a si e aos seus insultos...


(Iris in Machina - a máquina leva a deusa Íris)

Pistétero: Ah! Pois... é melhor que vá para outro lugar assar os noviços com os seus raios. Coro (cantando): Nós proibimos os deuses, os filhos de Zeus, de passar pela nossa cidade e proibimos os mortais de enviar o fumo dos seus sacrifícios por este caminho. 
Pistétero:  É estranho que o Arauto que enviámos para os mortais nunca mais voltou... 


(O Arauto entra, com uma coroa de ouro)


Arauto:  Oh!... Abençoado Pistétero, mui sábio, mui ilustre, mui gracioso, três vezes feliz, oh... amparem-me!
Pistétero:  De que falas tu?
Arauto:  De uma coroa de ouro, pela sua sabedoria. É coroado e honrado por todos os povos do mundo! 
Pistétero:  Aceito! Mas, por que razão me fazem os povos do mundo essa honra?  
Arauto:  Oh vós, que fundastes tão ilustre cidade no ar, vós não sabeis a veneração que os homens vos têm, e o ardente desejo de habitar nela. Antes de sua cidade ser edificada, todos os homens tinham a mania de Esparta - cabelos longos, jejuavam, eram sujos como Sócrates e andavam com bastões. Agora tudo está mudado. 
Assim que amanhece, eles saltam todos da cama para buscarem o seu sustento, tal como nós; em seguida, voam em direcção às notícias e, finalmente, devoram os decretos. A ornitomania é tão forte que alguns tomaram nomes de pássaros. Perdiz é o nome de um negociante de vinhos a martelo; Menipus chama a si mesmo Andorinha; Opuntius, o Corvo zarolho; Philocles, a Cotovia; Theogenes a Raposa; Licurgo, o Íbis; Chaerephon, o Morcego; Syracosius, a Pega; Mídias, a Codorniz... na verdade, ele se parece com uma codorniz duramente atingida na cabeça. 
Todos, no seu amor pelos pássaros, passaram a cantarolar canções que dizem respeito à andorinha, ao pato, ao ganso, ao pombo... em cada verso há asas, e em todos os eventos algumas penas. Isto é o que está acontecendo lá em baixo. Finalmente, existem mais de dez milhares de homens que estão vindo da Terra para lhe pedirem penas e garras em forma de gancho; por isso, lembre-se de se abastecer para todos esses imigrantes.
Pistétero (para alguns escravos): Ah! Por Zeus, não há tempo a perder. Vão o mais rápido possível e encham cada cesta que puderem encontrar com asas. Manes trá-las-á até mim, fora de muros, onde acolherei aqueles que se apresentarem.


(continua)
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