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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

As teias ateias

Um pequeno apontamento filosófico, ou político-social. 
Começamos por falar de um grande argumento dos irmãos Wachowski - "Matrix", uma triologia de filmes, já com há algum tempo, e do seu mais recente filme "Cloud Atlas".
 

Bom, devo dizer que o argumento de Matrix me influenciou, não muito pelo seu conteúdo filosófico, mas depois, sim, pela sua alegoria político-social. 
Digamos que a grande novidade, que me surpreendeu, à época (1999), foi um novo sentido dado à milenar "alegoria da caverna" de Platão. Ao contrário de Platão, que colocava os habitantes numa caverna, iludidos pelas sombras, Matrix dava um motivo original para aquela situação.
Havia a alegoria da "pilha", da "energia", que era obtida dos humanos, oferecendo uma vida de ilusão aos "habitantes" da Matrix.

No texto "Mayday" falei da necessidade de motivação de uma sociedade produtiva, de que como os escravos seriam menos eficientes que os servos, ou ainda que os servos seriam menos eficientes que cidadãos livres, numa sociedade competitiva, visando a produção. Ora a vida na "Matrix" era tida como agradável, apesar de ilusória, porque "humanos felizes" produziam mais "energia".
A situação é análoga em termos sociais... dada uma certa ilusão de sucesso, de esperança, etc., isso motiva os cidadãos a se empenharam mais numa produção, que vêem para benefício próprio, apesar de servir a lógica de uma Matriz social, que lhes escapa à percepção.

A melhor maneira de obter informação não é obviamente violenta, pelo contrário, a melhor maneira de obter informação é a sedutora. Um escravo, um servo, não irá ter nenhuma motivação especial para produzir, inventar, ou compor, algo que se destine apenas a um proveito alheio.
Essa lógica que a sociedade se encarregou de replicar, pode ser vista como imitação de uma lógica maior, que poderá ter escapado aos autores do modelo social... porque os homens têm os seus projectos, mas não será pior pensarem que há algo que os circunda, que os formou, que dá e extingue vida num sopro. Ou seja, a ilusão a que se chama "realidade", onde se podem fabricar outras ilusões, tem um propósito... aquilo a que chamei a "Questão Gaia", mas passada a "Raia", prefiro chamar agora "Questão Maia", e a sequência justificativa do nome, já a referi numa "arquitectura" passada. 

"Conhece-te a ti mesmo...", sim, mas com que objectivo para além de si próprio? - Por um mero acaso, uns certos seres apareciam num planeta com o objectivo de se conhecerem a si próprios. Pronto, e esta seria a história universal? Tudo o resto teria sido "sacrificado" ao objectivo egocêntrico de algumas criaturas, para sua felicidade e conforto? Seria porque tinham ganho o grande concurso da "evolução darwiniana"? E, já agora, qual o prémio ou objectivo desse concurso? Dominar a entidade que os gerou, que os define, e que os sustém? - Não creio!

Vemos, no filme Matrix, uma sociedade cibernética sem propósito... sim, porque qual era afinal o propósito das máquinas que escravizavam humanos? Para além da sobrevivência, parece que o seu único propósito seria maltratar a outra "espécie" pensante, a sua vida não era própria, era ainda determinada pelos humanos... não parece muito fascinante.

Como é bem retratado, na questão do "oráculo", o vaso iria cair, porque era precisa a sua queda, para a própria questão ser "naturalmente" levantada a Neo. Nessa perspectiva determinista (e não há outra possível), o caminho está traçado, aquilo que experimentamos é a sua compreensão. Digamos, por que razão tem que ser assim (ou para quem estiver preso as noções temporais - por que razão foi, é e será assim).

Ora esse tipo de questões é quase sempre colocado do lado antropocêntrico... afinal, o universo não é suposto pensar, nós é que somos espertos. Com aquele ligeiro detalhe engraçado, que já referi algumas vezes, o universo é benevolente ao ponto de ser capaz de produzir ser pensantes que duvidam que o universo seja capaz de produzir pensamentos, ou digamos entidades pensantes, ou digamos eles próprios
É uma conclusão lógica curiosa... nós pensamos, nós pertencemos ao universo, mas o universo não pensa. Está bem... acho que a frase diz tudo, por si própria, não precisa de mais colorido. E o que é engraçado é que também se pode explicar por que razão tal ilusão de liberdade tem que ser permitida.

Estamos a falar de uma inteligência superior à humana? - Não necessariamente, mas como é óbvio não conheço nenhuma cláusula que a limite a humanos, a seres verdes com antenas que são vistos como possíveis ET, ou a outro tipo de forma que tenha que ser estanque, e não permita (por exemplo) uma concepção divina semi-clássica. 
Ou seja, a contradição dos típicos ateus-pseudo-científicos é que admitem outras formas de inteligência, mas apenas que satisfaçam um determinado padrão animal que têm. Afinal, o universo seguiria umas três ou quatro regras que "descobriram"... e por acaso, por mero acaso, vão-se esquecendo de justificar a sua própria inteligência. Mas, já sabemos, foi "por acaso", o tal "acaso" que deve viver num "éter lógico" que o torna imune à própria noção de universo.
Porém, pelo outro lado, como já referi noutro texto, a essa crítica também não escapa a própria noção clássica de Deus, a que acrescento uma citação do que também já escrevi, e que é óbvio:
                                         Se puder ver tudo então o observador e o observado coincidem... por correspondência directa. Se o observador for superior ao observado, então é porque não se observa completamente a si próprio, e caso contrário, o observador tem uma óbvia lacuna na sua observação.

Portanto, ou se identifica Deus à noção de Universo, como Espinosa sugeria, ou temos que entrar em lógicas que escapam à fundação do nosso raciocínio mais elementar, o que é equivalente a entrar nos ideais de liberdade artística, auto-contraditórios... porque em última análise teríamos a liberdade de invocar simultaneamente uma coisa e o seu contrário.

Há uma outra via, ainda dentro do campo divino, semi-clássico, que atribuía personificações a entidades que se manifestavam. Dentro do panteão greco-romano temos múltiplos exemplos. A imprevisibilidade de certos fenómenos levava a essa velha sabedoria (associar os oceanos a Poseidon, as intempéries a Zeus, etc.). 
É claro que a nossa compreensão melhorou, tudo parece modelável com alguma matemática, mas ao mesmo tempo levou a conclusões que têm sido filosoficamente atiradas para debaixo do tapete... escondidas no deslumbramento da proeza alcançada. 
Que conclusões são essas?
- Simples, muito simples na sua complexidade.
Se os processos forem lineares não há grande novidade, mas com os processos não lineares as coisas têm aquele detalhe do "acaso". 
Se houver uma bifurcação, qual opção será escolhida? 
A espada em equilíbrio na ponta, cai para a esquerda, ou para a direita?
Quem decide isso? Adaptando um pouco uma frase conhecida (de Einstein): se o universo joga aos dados, os dados não farão parte do universo?

Ora, no nosso pequeno deslumbramento, acho que temos esquecido as limitações que são evidentes, e que a causalidade não é assim tão simples. É uma noção que servirá uma compreensão, mas que essa compreensão será sempre limitada, e serve outro propósito - a compreensão não egocêntrica, nem antropocêntrica... Não é cortando as asas às borboletas na Austrália que evitaremos a possibilidade de haver uma tempestade na Europa.

Pois bem, "o conhece-te a ti mesmo" é uma questa de qualquer entidade inteligente, e como é inevitável considerar o universo como entidade inteligente, e nós fazemos parte dessa inteligência que emerge da sua estrutura, essa deve ser a nossa questa não antropocêntrica. Sob pena de nos tornarmos em "cérebros" deslumbrados que esquecem o seu próprio suporte vital.

Uma estrutura inteligente que se questionasse, um universo, não aceitaria emergir do nada, sem toda uma sequência que justificasse a razão da sua própria existência e inteligência. Porque inteligência é compreensão.
A sua emergência do nada pode ser explicada, do ponto de vista geral, mas os seus detalhes, os diversos níveis e relações em que a existência e inteligência se pode manifestar, pois isso é mais complicado... é capaz de ser suficiente para uma eternidade, segundo algumas crenças. E não se trata aqui de evoluções biológicas - a aquisição de inteligência, a capacidade de se olhar a si mesmo, essa já foi conseguida, falta evoluir nas ideias e conceitos. E se este universo tem uma estrutura única, tem também a capacidade de nos permitir modelar outros universos, algo a que se chama "arte".

Termino, regressando aos filmes... 
Cloud Atlas é um filme excelente, já longe da ideia do "one" anagrama de "neo" de Matrix, leva a uma panóplia de interacções humanas que se manifestam ao longo do tempo, em diversas épocas. O passado e futuro estão ligados, longe de uma causalidade trivial. Os perigos estão lá, há pequenos heróis e vilões, mas essencialmente há pessoas, presas numa enorme teia intemporal, que só é desvendada ao espectador.

1 comentário:


  1. Caro ARA,

    escrevi bastante sobre o assunto, mas para evitar leres coisas espalhadas, vou tentar resumir. Um primeiro ponto é a divinização da Fortuna, do acaso.
    A ciência não baniu Deus, chamou-lhe Acaso/Fortuna, e usou isso para preencher as falhas. Onde tinhas o toque divino, passaste a ter o toque do acaso, do rolar de dados. Até na língua o "graças a Deus" passou a "tive sorte". A inexplicabilidade ficou, mas passou de uma divindade consciente racional, a uma divindade trapalhona irracional.

    Ao fazer isso, a ciência varreu para debaixo do tapete a epistemologia. Ou seja, em que universo coloca o acaso? Em nenhum... a "sorte", que vive no éter lógico, decide fazer nascer a vida e o homem num jogo de casino evolucionista.
    Pior, diz-se que não há nenhuma inteligência nisto... o que equivale ao sujeito recusar - ou a sua inteligência - ou que pertence ao universo. Ora, assim que o universo produziu inteligência passou a ser inteligente - os humanos não se podem colocar fora do universo que os criou. A ciência modernaça chama universo às galáxias e semelhantes, vê tudo pelo canudo, e esquece de incluir na noção de universo os seus próprios olhos, os dados da sorte, etc... Tem dado jeito vender o ídolo, escondendo os pés de barro.

    Os "sentidos" são uma noção científica difusa. Os "sentidos" não intervêm nos sonhos, e não fazes a mais pálida ideia de onde veio aquela informação "nocturna". Não te podes apropriar da sua criação, porque até é natural apareceres como simples interveniente. Depois vem a tanga psicológica... que chama a isso subconsciente, tal como poderia chamar "gelado de limão". O que interessa é que não estás em controlo - seja nesta realidade, seja na dos sonhos.
    Se estivesses ias ser masoquista e usar a noite para fazer pesadelos, para te auto-atormentar? - Será o deus trapalhão do Acaso? - ou é "castigo" do Outro?


    É uma constatação que cada homem é a medida das suas coisas. Mas, por experiência da linguagem, sabe que outros homens são também medida dessas coisas. Ora, na velha introspecção asceta indiana, budista, apenas vais parar ao remoinho de Caribdis. Vais para lá com o objectivo de ser feliz sozinho. Isso corresponde à ilusão de que a mão direita auto-satisfaz o homem. Não... isso nada tem de paraíso, o mundo moldado pelos nossos desejos começa com anjinhos e sereias, mas depois revela-se um inferno. Porque a natureza infinita do homem não suporta a previsibilidade, e os anjinhos passam a ser vistos como demónios e as sereias como monstros.
    Será sempre pobre o sujeito que, não sabendo o que é e o que quer, nunca se satisfará com o que tem.

    Do outro lado tens a rocha de Scila, é a montanha dos outros, que te ameaça, que te contradiz, que te surpreende, que te lixa. No entanto, se mergulhares no inferno da previsibilidade (do mundo à tua medida), abraçarás o primeiro que te surpreenda. É por isso que tens que os trazer às costas, porque precisas da imprevisibilidade que trazem. Isto não é questão de cada um, é questão de todos, mas a bem da imprevisibilidade, não há sincronização.
    A sincronização faz-se através das linguagens, que é a única ponte entre homens que está para além da "realidade física".
    Cada um poderia ter o seu universo perfeito, mas seria um inferno solitário, o paraíso terá que ser um compromisso numa realidade comum, definida por todos, mas onde há verdades absolutas, que a racionalidade e realidade partilhadas não permitem negar. É um compromisso entre caos e ordem - a inteligência não teria lugar no caos completo, e seria robótica numa ordem simplificada.

    Agora, isto está aqui colocado em linguagem semi-filosófica, mas é pura matemática... não há nada de romântico aqui. As noções românticas são perfeitamente racionais. Só que a felicidade não é uma noção individual, é comunitária.

    Deixo mais um link no nome, onde poderemos continuar a conversa, com todo o gosto, para não abusarmos do Sérgio Lavos.

    Grande abraço,
    da Maia

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