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terça-feira, 15 de maio de 2012

Espiral de conhecimento

Há certos filmes que ilustram bem diversos problemas filosóficos, de forma simples, sem terem que desenterrar citações de grandes vultos do pensamento para lhes fazerem "companhia". As ideias têm a sua génese, mas não precisam de cartão de visita, com registo parental na aristocracia académica.
Um código genético das ideias são as palavras, que podem nascer no escritor, mas ganham vida própria e podem-se reproduzir em cada leitor... por vezes com pequenas anomalias de compreensão, que podem gerar novas ideias.
Costuma contar-se que a ideia da força de gravidade teve-a Newton quando uma maçã lhe caiu na cabeça. Para perceber a génese da ideia, precisamos de saber quem foi Newton, quem era a maçã, e por que razão caiu numa cabeça só nessa altura. Por que razão não seria uma pêra a aforturnar a cabeça de Duarte Pacheco Pereira, que descrevera essa noção tão grave uns séculos antes.
Mas, para perceber essa noção elementar de gravidade, não precisamos de nenhum fruto simbólico, nem de nenhuns pais emprestados. As ideias existem para além da sua difusa génese, não devem ser é iludidas sob pena de se perder conhecimento, do seu valor prático, histórico, simbólico ou artístico.

O filme "Groundhog Day" é uma comédia romântica, ao mesmo tempo que aborda um problema de círculo temporal. O protagonista vê-se sucessivamente preso nos mesmos acontecimentos, dia após dia, e acaba por experimentar problemas filosóficos interessantes. Como só ele muda, ao fim de algum tempo acaba por conseguir prever todos os acontecimentos, e todas as possibilidades. Como só ele muda, acaba por dar-se conta que está sozinho, e desespera, ao ponto de tentar o suicídio várias vezes, apenas para voltar exactamente ao mesmo ponto. Não se conseguia libertar do círculo temporal...
Groundhog Day (1993)

De forma instrutiva, apesar do protagonista deter uma clara vantagem de conhecimento sobre os restantes personagens, e aproveitar isso até para enriquecer, numa dupla sensação de omnisciência e omnipotência, não fica mais feliz por isso, ao contrário. 
Encontra-se na situação da criança que já brincou suficientemente com os seus "bonecos", e precisa de brincar com amigos que estejam em situação de igualdade. Acabará por ceder no seu controlo, e procurar uma imprevisibilidade que lhe tinha sido negada.

Esta é uma parte filosófica, que ilustra bem que o controlo da realidade não é propriamente algo agradável, e a longo termo leva à sensação de isolamento absoluto. Quanto ao isolamento, há uma abordagem semelhante na obra de Daniel Defoe, de 1719, "Robinson Crusoe", onde o isolamento desesperado numa ilha perdida acaba por fazer com que Crusoe encare como igual o "selvagem" Sexta-Feira... que educacionalmente seria visto pelos leitores da época como escravo.

Mas há outras questões filosóficas... e que não estão completamente afastadas de consideração, até pela manifestação de patologias. Por exemplo, nada impedia que o protagonista, também ele, tivesse ficado preso no circuito temporal. Se isso acontecesse, e ele não se apercebesse, repetindo-se tudo, isso seria equivalente a uma única ocorrência. Porque, se os envolvidos não se apercebem, só um observador externo é que se pode aperceber da repetição. 
Se é o próprio que se apercebe da repetição, já não se trata do mesmo... primeiro esteve naquela situação, depois também, mas sabe adicionalmente que já viveu o momento antes. Funciona apenas como o conhecido "déjà-vu". 
É o que acaba por acontecer no filme, o protagonista sabe que (quase) tudo voltou a ocorrer, só que ele é não é o mesmo - ele acumula a informação passada.

Não muito diferente é a questão de Sísifo que pode ser levado a repetir a tarefa, mas quem executa a tarefa a primeira vez, tendo consciência de si, não é o mesmo que a repete.
A capacidade humana torna as tarefas repetitivas como parte inconsciente, ao fim de algum tempo de aprendizagem. Ou seja, as repetições deixam de ser observadas, tal como os óculos não são vistos por quem os usa... pelo simples facto de serem presença constante. O espírito humano não dá relevância às tarefas repetitivas, porque depois de as aprender e conhecer por completo, ficam tão automáticas quanto o caminhar... e enquanto efectua essas tarefas automaticamente, pode pensar, dentro das suas condicionantes. 
Sísifo é condenado pelos deuses à repetitiva tarefa 
de carregar uma pedra e vê-la rolar pela montanha.

Enquanto Sísifo não se libertar da pedra, ambos formam uma identidade irracional, para um observador externo... mas visto de dentro, Sísifo não larga a pedra porque ela lhe é indiferente, não lhe prende o pensamento. Talvez Sísifo esteja apenas a condenar os deuses a ficarem eternamente presos ao eterno medo do movimento repetitivo que eles próprios lhe impuseram.

Porém, como já referimos, esse problema não ocorre a nível consciente. Mesmo do ponto de vista biológico, as tarefas automáticas, uma vez apreendidas são relegadas para circuitos inconscientes. 
Ao nível da consciência circuitos temporais são apenas espirais de conhecimento, em que podemos rever situações passadas com um novo olhar. Não se fecham. Serão iguais externamente, mas quem as revisita é que já será diferente, pelo que a situação não se repete.
Espirais num monumento megalítico (Newgrange, Irlanda)

A espiral de conhecimento constrói-se em camadas, sobre informação já existente, revisita conceitos centrais, e acrescenta novas ideias, gerando nova informação. Caminha no sentido exterior de uma visita aberta, e não no sentido interior de se fechar sobre si própria, ainda que grosseiramente possa dar a ideia de repetição.

3 comentários:

  1. Interessante:
    Like Groundhog Day ... but with whales
    (H. Kenneth, "Adelaide Now", May 19, 2012)

    For the past three years, a solo humpback whale has heralded the start of the annual whale migration.

    HOLLYWOOD popularised the term Groundhog Day - to define a recurring event.

    Now the state's West Coast is turning May 15 into its own version.

    For the past three years, on exactly the same day in May, whale charter operator Rod Keogh has spotted a solo humpback whale moving through the waters of Fowlers Bay heralding the start of the annual whale migration from sub-Antarctic waters towards the head of the Great Australian Bight.

    And he claims that same whale announced its arrival on Tuesday about 9.30pm by slapping its tail against the water; the sound echoing around the enclosed bay. As if heeding its call, a pod of southern right whales followed days later on the annual pilgrimage to one of the of the Southern Hemipshere's most important nurseries.


    "It's just bizarre but you can set your clock by this whale coming into the bay," said Mr Keogh, who operates Fowlers Bay Eco Park 135km west of Ceduna, of the humpback.

    "I have no idea why, all I know is he comes into the bay for two to three hours to have a rest for a bit and then he moves on. Is it coincidence? I really don't know but I've set my clock by it to mark the start of the whale watching season."

    It has echoes of Groundhog Day in the US where the behaviour of a furry groundhog on February 2 can signal early or late spring. Each year thousands of people flock to Fowlers Bay and the Head of Bight where 25-67 calves are born from June to October.

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  2. Parece que os lusitanos tinham muitas "espirais de conhecimentos", segundo um novo interessante artigo na Wiki, diz que tinham também pavimentos de pedra antes do império romano os vir "civilizar" !!!

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Selection_of_carvings_from_the_Castro_de_Santa_Trega.jpg

    Boas leituras, cumprimentos, José Manuel CH-GE

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    1. Caro José Manuel,
      Lembrei-me da troca de comentários sobre as espirais:
      http://portugalliae.blogspot.pt/2010/12/piramides-na-bosnia.html
      ... já lá vai ano e meio!
      Não sei o significado dessas espirais antigas... não se sabendo mais sobre a intenção de quem as criou, a interpretação é múltipla. Pareceu apropriado lembrar isso aqui a propósito deste texto.

      Obrigado pelo link sobre o Castro de Santa Tecla.
      O nome em português "tecla" é mais curioso que "trega", e mostra como é hábito mudar nomes "r" com "l", "g" com "c", e mais uma troca.
      Enfim, isto é sempre bater na mesma tecla...

      Abraços!

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