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segunda-feira, 21 de maio de 2012

Truman

Uma das dialéticas interessantes entre a sociedade e o indivíduo é colocada num filme de 1998, conhecido como "Truman Show". O nome Truman pode ser visto como aglutinação de True man, ou então pode ser visto à luz de um plano Marshall.
O personagem Truman tem uma vida completamente falsificada num gigantesco ambiente de estúdio. É uma versão do conhecido programa Big-Brother, levada ao limite, já que o personagem nasce e cresce dentro do ambiente de estúdio que simula uma cidade, em que todas as pessoas que interagem com ele são actores. "A vida em directo" de Truman gera grandes receitas televisivas, devido ao voyeurismo duma sociedade externa que autoriza a experiência e se diverte com o enredo "real".

Truman Show (1998)

Perto do final, algumas coisas correm menos bem na encenação, e Truman aventura-se no desconhecido, acabando por descobrir os limites do cenário onde vive.
O argumento é muito interessante, algo diminuído pelo jeito de comédia, mas aborda os limites entre a realidade e a ilusão. Colocaria o  espectador numa perspectiva mais próxima do enredo filme se não fosse apenas um elemento a ser iludido, mas sim um grupo de indivíduos. De qualquer forma, terá tocado certamente muitos espectadores que podem ter colocado em dúvida se a sua vida não estaria sob controlo externo, nalguns eventos. Levado a sério, colocaria o espectador até a duvidar da sua família e amigos mais íntimos... No entanto, só quem não soubesse o que é a realidade é que se apoquentaria com o contexto.
Ao designarem o produtor do espectáculo como "Criador", o filme vai ainda mais longe no sentido de colocar a questão do papel divino, já que relativamente à vida de Truman o produtor do programa tinha praticamente controlado quase todos os aspectos da sua vida, deixando-lhe alguma margem de manobra, mas condicionando até a sua permanência na cidade. Truman não falava com amigos, mas sim com toda uma máquina definida para gáudio dos espectadores de contos, contos de reis.
A decisão final de Truman, ao ignorar "o seu criador" era a esperada, perante tal situação bizarra, e acaba por reentrar no cenário - afinal a única casa ou realidade que conhecia, desprezando o contexto exterior, que nada lhe dizia.
Na parte final, à medida que o contexto se revela, o tom vai ficando mais austero, e não se percebe se no final os actores contratados ficam ou não desempregados.

É claro que o filme merecia uma sequela, mais de ficção científica, em que afinal o produtor tinha recebido ordens e sugestões implícitas para realizar aquele espectáculo, sem saber exactamente de quem. Por hierarquia implícita, o próprio produtor estaria ao serviço de uma outra inteligência superior (para simplificar, extra-terrestre), voyeur dos próprios espectadores do programa, talvez com o propósito de uma análise dos valores da sociedade terrestre. E o contexto de criador em cima de criador, poderia não ter fim... da mesma forma que o próprio Truman poderia ser induzido pelo produtor a criar um próprio show dentro da sua cidade. Ou seja, Truman ficaria produtor de um espectáculo semelhante, sem se aperceber que tinha sido condicionado para isso. Quando estivesse pronto a revelar-se ao seu Truman-"filho", seria ele próprio surpreendido com a sua condição!

Os valores humanos em Truman Show são caricaturados de forma dura... os espectadores e a maioria dos actores revelam-se como indivíduos incapazes de reflexão. Separavam-se de tal forma de Truman, que eram incapazes de se projectarem na mesma situação. Não viam em Truman um seu semelhante... e, no entanto, estariam sob situação idêntica. Poderiam ter confiado em instruções, ideias cuja origem já nem sabiam bem reportar, perdidas na cadeia de comando, ou numa qualquer história aparentemente antiga, para realizarem aquele cenário... quando no fundo poderiam ser eles próprios os personagens sob inspecção externa.
De todo aquele espectáculo montado, mesmo dadas as circunstâncias de chantagem financeira, poucos seriam os "humanos"... Eram apenas indivíduos centrados na competição pelos seus interesses particulares, como qualquer animal sujeito pela sua natureza a competir por domínio territorial. E, como se sabe, não adianta usar argumentos racionais com um leão quando se passa pelo seu domínio territorial.

A colaboração social tem dois aspectos que se degladiam... por um lado, é do interesse do indivíduo no sucesso do conjunto, por outro lado é a afirmação do indivíduo dentro desse conjunto, por competição contra os semelhantes.
A afirmação do indivíduo é o que permite a diversidade, por destaque da sua individualidade. Se ela é colocada em confronto com os outros, é óbvio que limitará a colaboração ao mínimo. Assim se cria uma sociedade esquizofrénica, na ambiguidade entre os valores individuais e sociais, especialmente quando não há objectivo social comum bem definido. Dito de outra forma, quando o "contrato social" é apenas uma farsa cujos propósitos não são claros, e tudo se acaba por resumir à permanência de uma hierarquia instalada.

Porém, é sabido que uma sociedade baseada numa ocultação, ou exclusão, gera por reciprocidade outras sociedades semelhantes, e assim volta-se à questão da competição individual entre sociedades.
No fundo, para teste de um modelo com um propósito, basta criar réplicas, modelos semelhantes, que avaliam a eficácia do melhor.... desde que não sejam infiltrados externamente. Caso haja perigo de infiltração destrutiva, é natural a estrutura criar as suas próprias protecções de segurança, tornando-se demasiado rígida, austera, e por isso menos eficaz.
Tal como na evolução biológica, as estruturas evoluíram no sentido de comparar a sua adaptação cognitiva, e se os homens foram presa fácil de predadores, agindo isoladamente, passaram a predadores sem rival, ao colaborarem.

Só que essa colaboração desagregava-se também em competição interna, quando os inimigos eram identificáveis. A mais valia de conhecimento era perdida num fácil contágio, pelo que houve necessidade de progressivas técnicas de ocultação e até de ocultação da estrutura. A técnica de ocultação também a encontramos espelhada na natureza, em diversos animais... e não foi por isso que deixaram de vir a ter predadores. Mais tarde, ou mais cedo, acabaram por fazer notar a sua presença...
Se Maomé não vai à montanha, a montanha acaba por ir ter com Maomé.

A simples presença de inteligência, gera inteligência reactiva. Pode até acontecer que a estrutura seja bastante eficaz, e tenha permitido estabilidade, como nalguma ilha polinésia foi possível manter uma longa dinastia... até ao momento da visita dos Europeus. Aí, uma estrutura que tinha sido localmente eficaz, pelos vícios da estabilidade não tinha evoluído suficientemente e era confrontada, de forma abrupta, com uma civilização que tinha evoluído na Europa em quase permanente confronto.
Correriam o risco de completa extinção (que pode mesmo ter acontecido nalguns casos) pela excessiva confiança na sua própria estrutura social, sem adversários até essa época.

Gémeos, mesmo sem serem falsos, ou estruturas gémeas, é algo fácil de ocorrer, ou de gerar, por diferenciação interna na estrutura, ou por cópia natural externa. Assim, tornam-se potenciais competidores, a menos que partilhem os mesmos objectivos de colaboração, sendo claro que retirados medos, ódios, etc... a partilha de conhecimento favorecerá sempre o conjunto. Ou seja, a estrutura que tende a prevalecer será a que conseguirá agrupar maior fonte de conhecimento fundamental, sem fazer perigar o conjunto, dando espaço à aceitação dos diversos conhecimentos/culturas individuais. Simplesmente a sociedade não pode sufocar o indivíduo, e a diversidade indivídual deve caminhar no sentido de uma confrontação e colaboração construtiva.

Pensando a longo termo, é algo praticamente óbvio... ou a presença de conhecimento no universo seria um espasmo temporário, o que corresponderia à sua anulação... e à existência de uma noção de tempo para além do universo - algo absurdo; ou então haverá um conhecimento aglutinador que irá recuperar o fundamental da sua existência.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Espiral de conhecimento

Há certos filmes que ilustram bem diversos problemas filosóficos, de forma simples, sem terem que desenterrar citações de grandes vultos do pensamento para lhes fazerem "companhia". As ideias têm a sua génese, mas não precisam de cartão de visita, com registo parental na aristocracia académica.
Um código genético das ideias são as palavras, que podem nascer no escritor, mas ganham vida própria e podem-se reproduzir em cada leitor... por vezes com pequenas anomalias de compreensão, que podem gerar novas ideias.
Costuma contar-se que a ideia da força de gravidade teve-a Newton quando uma maçã lhe caiu na cabeça. Para perceber a génese da ideia, precisamos de saber quem foi Newton, quem era a maçã, e por que razão caiu numa cabeça só nessa altura. Por que razão não seria uma pêra a aforturnar a cabeça de Duarte Pacheco Pereira, que descrevera essa noção tão grave uns séculos antes.
Mas, para perceber essa noção elementar de gravidade, não precisamos de nenhum fruto simbólico, nem de nenhuns pais emprestados. As ideias existem para além da sua difusa génese, não devem ser é iludidas sob pena de se perder conhecimento, do seu valor prático, histórico, simbólico ou artístico.

O filme "Groundhog Day" é uma comédia romântica, ao mesmo tempo que aborda um problema de círculo temporal. O protagonista vê-se sucessivamente preso nos mesmos acontecimentos, dia após dia, e acaba por experimentar problemas filosóficos interessantes. Como só ele muda, ao fim de algum tempo acaba por conseguir prever todos os acontecimentos, e todas as possibilidades. Como só ele muda, acaba por dar-se conta que está sozinho, e desespera, ao ponto de tentar o suicídio várias vezes, apenas para voltar exactamente ao mesmo ponto. Não se conseguia libertar do círculo temporal...
Groundhog Day (1993)

De forma instrutiva, apesar do protagonista deter uma clara vantagem de conhecimento sobre os restantes personagens, e aproveitar isso até para enriquecer, numa dupla sensação de omnisciência e omnipotência, não fica mais feliz por isso, ao contrário. 
Encontra-se na situação da criança que já brincou suficientemente com os seus "bonecos", e precisa de brincar com amigos que estejam em situação de igualdade. Acabará por ceder no seu controlo, e procurar uma imprevisibilidade que lhe tinha sido negada.

Esta é uma parte filosófica, que ilustra bem que o controlo da realidade não é propriamente algo agradável, e a longo termo leva à sensação de isolamento absoluto. Quanto ao isolamento, há uma abordagem semelhante na obra de Daniel Defoe, de 1719, "Robinson Crusoe", onde o isolamento desesperado numa ilha perdida acaba por fazer com que Crusoe encare como igual o "selvagem" Sexta-Feira... que educacionalmente seria visto pelos leitores da época como escravo.

Mas há outras questões filosóficas... e que não estão completamente afastadas de consideração, até pela manifestação de patologias. Por exemplo, nada impedia que o protagonista, também ele, tivesse ficado preso no circuito temporal. Se isso acontecesse, e ele não se apercebesse, repetindo-se tudo, isso seria equivalente a uma única ocorrência. Porque, se os envolvidos não se apercebem, só um observador externo é que se pode aperceber da repetição. 
Se é o próprio que se apercebe da repetição, já não se trata do mesmo... primeiro esteve naquela situação, depois também, mas sabe adicionalmente que já viveu o momento antes. Funciona apenas como o conhecido "déjà-vu". 
É o que acaba por acontecer no filme, o protagonista sabe que (quase) tudo voltou a ocorrer, só que ele é não é o mesmo - ele acumula a informação passada.

Não muito diferente é a questão de Sísifo que pode ser levado a repetir a tarefa, mas quem executa a tarefa a primeira vez, tendo consciência de si, não é o mesmo que a repete.
A capacidade humana torna as tarefas repetitivas como parte inconsciente, ao fim de algum tempo de aprendizagem. Ou seja, as repetições deixam de ser observadas, tal como os óculos não são vistos por quem os usa... pelo simples facto de serem presença constante. O espírito humano não dá relevância às tarefas repetitivas, porque depois de as aprender e conhecer por completo, ficam tão automáticas quanto o caminhar... e enquanto efectua essas tarefas automaticamente, pode pensar, dentro das suas condicionantes. 
Sísifo é condenado pelos deuses à repetitiva tarefa 
de carregar uma pedra e vê-la rolar pela montanha.

Enquanto Sísifo não se libertar da pedra, ambos formam uma identidade irracional, para um observador externo... mas visto de dentro, Sísifo não larga a pedra porque ela lhe é indiferente, não lhe prende o pensamento. Talvez Sísifo esteja apenas a condenar os deuses a ficarem eternamente presos ao eterno medo do movimento repetitivo que eles próprios lhe impuseram.

Porém, como já referimos, esse problema não ocorre a nível consciente. Mesmo do ponto de vista biológico, as tarefas automáticas, uma vez apreendidas são relegadas para circuitos inconscientes. 
Ao nível da consciência circuitos temporais são apenas espirais de conhecimento, em que podemos rever situações passadas com um novo olhar. Não se fecham. Serão iguais externamente, mas quem as revisita é que já será diferente, pelo que a situação não se repete.
Espirais num monumento megalítico (Newgrange, Irlanda)

A espiral de conhecimento constrói-se em camadas, sobre informação já existente, revisita conceitos centrais, e acrescenta novas ideias, gerando nova informação. Caminha no sentido exterior de uma visita aberta, e não no sentido interior de se fechar sobre si própria, ainda que grosseiramente possa dar a ideia de repetição.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Conjunto Universal

Complemento um pouco a posta sobre Conhecimento Perigoso... que não seria propriamente sobre conhecimento que leva à censura de conhecidos blogs pela nossa Assembleia da República, com a concordância de deputados cuja missão primeira deveria ser defender a liberdade de expressão.
Nada propriamente de novo nos bastidores do sistema, que normalmente usa alertas de "infecção por virús" para bloquear os acessos a conteúdo indesejado, como já aconteceu neste blog... e só é mais preocupante por já estar a sair das trevas dos bastidores.

Na sequência do trabalho de Cantor, sobre a teoria dos conjuntos, surgiu um paradoxo matemático sobre o Conjunto Universal. Esse conjunto seria o "conjunto de todos os conjuntos"... mais uma vez remetendo para as dificuldades e contradições sobre o infinito, e suas interpretações metafísicas.
O problema era basicamente o seguinte... sendo o Conjunto Universal um conjunto, deveria pertencer a si próprio, para além de conter todos os outros, o que significaria haver um maior. Acrescia a isso Cantor ter provado que ao conjunto das partes deveria corresponder uma potência de infinito superior.
A contradição foi banida excluindo do sistema tal conjunto!

A questão do infinito colocava-se da mesma maneira que quando falamos no "maior número", já que podemos sempre considerar um número superior, como bem sabem as crianças.
Os processos envolvendo a noção de infinito foram banidos, até que permitidos no Séc. XVII trouxeram um desenvolvimento sem precedentes à matemática, e ao mundo.

Havia aqui um novo embate entre concepções filosóficas... a exclusão do Conjunto Universal seria uma maneira de excluir a noção universal de Deus, por argumentos racionais. Acordou-se num sistema de axiomas chamado ZFC (Zermelo-Fraenkel-Cantor) e julgou-se que isso permitiria construir toda a Matemática... até que Gödel provou o contrário, para desespero de Hilbert.
A questão da axiomática matemática tem alguns aspectos religiosos, já que os Axiomas resultam de crença em evidências simples... sendo alguns mais polémicos que outros (caso do Axioma da Escolha).

Mesmo assim, o Conjunto Universal acabou por ser reposto num sistema alternativo NF (New Foundations), e que terá certamente adeptos entre os criacionistas e oposição dos evolucionistas!
Do ponto de vista prático, a maioria destas questões são basicamente irrelevantes, sendo que o sistema ZFC é tido como adoptado pela maioria da comunidade internacional.
O mais interessante aqui é notar a delicadeza destes assuntos, fazendo ver que mesmo a racionalidade matemática não se liberta de problemas de intolerância e ostracismo, pela fé... uns acreditam numas coisas, outros noutras, e procura-se impor uma visão escolástica.

A noção de infinito é pura e simplesmente uma idealização que facilitou bastantes os cálculos analíticos, e que esteve "proibida" durante milénios, talvez porque os criacionistas consideravam pertencer apenas ao divino... Curiosamente, é pela linha oposta, evolucionista, que esta proibição de infinito ocorrerá de novo.
E, no entanto, nada impediria conceptualizar o "Conjunto" Universal como uma entidade limite, da mesma forma que é feito com o infinito numérico. Também no caso do infinito numérico não se podem aplicar as regras habituais, e não deixaram de ser consideradas novas regras. O mesmo poderia ser feito conceptualmente para essa entidade, vista como Conjunto-limite Universal.

Independentemente das considerações mais matemáticas, o grande problema é uma incapacidade inata do Homem lidar com a sua finitude, e que basicamente se resume a não estar satisfeito consigo próprio. Por um lado isso é necessário, pois só isso permite o espírito criativo, mas é completamente inútil quando se pretendem daí tirar conclusões que não sejam de simples índole prática.
Nem eram precisos os resultados de Gödel, é óbvio - por definição - que a finitude humana será sempre incompleta quando procura abarcar o infinito que apenas pode conceptualizar.
Há ainda quem sonhe que uma passagem para "dimensão superior" poderia resolver essa ânsia inata, mas é pura ilusão, já que, como mostrou Cantor, os infinitos sucedem-se em potências superiores...

Enfim, é essencialmente um problema educacional, que se resolve nas crianças mimadas - que querem sempre mais e mais - com umas boas palmadas no rabo!