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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Viver, mata!

A principal causa de morte é a vida... como sabemos, todos os que morreram tiveram a particularidade de viver antes. Dita esta evidência banal, importa notar que o medo da morte condiciona cada vez mais a forma de viver. O medo da morte foi levado ao ponto de ter medo de viver!

O medo é uma previsão do futuro de resultado nefasto. 
Como qualquer previsão, baseia-se nos dados conhecidos, na educação e experiência do indivíduo. Desta forma, uma educação ou informação dirigida leva a antecipação de cenários nefastos, que assim o próprio nunca ousará experimentar.
Imaginando uma experiência em que voluntários têm que escolher entre dois botões, um vermelho e outro azul, se o indivíduo verificar que todos os que carregaram no botão vermelho foram vítimas de uma descarga eléctrica, não hesitará em optar pelo botão azul. Aí usa o esquema de reflexão, colocando-se na pele do seu semelhante, para antever o futuro. 
Porém, se notar que todos os indivíduos que viu usavam um uniforme vermelho, e sendo o seu azul, ficará na dúvida de associação... deverá prestar atenção à cor, ou apenas à sua semelhança enquanto homem?
Se os condutores da experiência tornarem claro ao indivíduo que o seu uniforme é diferente dos outros, e que deve tomar isso em atenção, o próprio será tentado a levar em conta essa singularidade, e carregará no botão vermelho, como os anteriores, mas pensando que o resultado será diferente, por ter uniforme azul. Os educadores ao sinalizarem a diferença tornam-se parte activa para que a opção seja a mesma! Ao contrário, se os educadores enfatizarem que a cor dos uniformes é irrelevante, o indivíduo tomará a outra opção.
Esta experiência tanto pode ocorrer pelo lado da punição, como pelo lado da recompensa, é indiferente!
Poderá haver alguma excepção, mas o resultado é praticamente garantido na larga maioria... e os educadores, sem necessidade de prestar falsa informação, apenas enfatizando um ou outro aspecto, garantem um resultado esperado para o colectivo dos voluntários.

O papel da educação é assim simples, mas poderoso... define uma linha de raciocínio por mera sugestão opinativa do poder implantado. Com uma educação cumpridora e uma poderosa comunicação social, as informações transmitidas orientam de forma implícita a linha condutora de raciocínio e a acção dos indivíduos.


Vedas
A origem das ideias, a chamada originalidade, é algo dificilmente escrutinável, mesmo num mundo onde a verdade tivesse sido imperativo. Num mundo de sombras, de falsidade e oportunismo conveniente, a questão da originalidade acaba por ser quase indiscernível...
É nesse contexto que surge aqui a menção aos Vedas, já que os textos indianos têm um análogo persa, o Avesta. De um lado aparece Krishna como revelador, e do outro Zaratustra...
Libertando-nos dos personagens, interessa o conteúdo.

O ponto fulcral nas religiões foi sempre a questão da morte, e é especialmente interessante a filosofia indiana que centrou a análise na comparação com os sonhos... grande parte do idealismo europeu acabou por ter essa inspiração em textos antigos. Não apenas nos textos gregos de Parménides e Platão, mas também na filosofia dos Vedas e do Avesta.
Por uma questão de educação ocidental, e ao contrário do que se passou no Oriente, estas filosofias não se impuseram, tendo sido moldadas num contexto judaico-cristão.

É especialmente interessante observar-se que ao mesmo tempo que a filosofia hindu apresenta um Krishna acompanhado de uma vaca sagrada, o Mitraísmo (uma religião que foi popular no Império Romano ao ponto de competir com o cristianismo) coloca o seu herói principal - Mitra - numa cena de sacrifício de um touro:

Krishna e a vaca sagrada // Mitra e o sacrifício do touro

As associações do Mitraísmo ao Zoroastrismo devem essencialmente ser vistas como uma deturpação da filosofia de Zaratustra, que não contemplava sacrifícios animais. As diversas versões de uma mesma filosofia ou religião podem ser tão chocantes como judaísmo, cristianismo e islamismo, apesar de usarem todas a Bíblia do Antigo Testamento. Uma simples deturpação essencial pode provocar uma fractura irreparável, aproveitada para diferentes propósitos do original...
Não deixa de ser interessante notar que Mitra usa o barrete frígio, ligado a tantas outras representações, em particular ao símbolo da liberdade.

Mas, não nos afastando do assunto original, retomamos a questão da relação entre sonhos e morte.



Os sonhos e a morte
A nossa experiência de vida tem elementos suficientes que nos permitem compreender o contexto mortal em que nos inserimos. Há uma aparente continuidade que nos define, em que um tempo marcado por níveis de memória une as recordações de infância, de adolescência, e de idade adulta. Porém, é óbvio que não há propriamente nenhuma presença hoje de quem fomos na infância ou na adolescência, ou até mesmo há algumas semanas atrás... Podemos lembrar-nos do que pensámos em certas ocasiões, mas até podemos criticar essa forma de pensar anterior, mostrando a diferença de personalidade na evolução. Ou seja, podemos considerar que a personagem que fomos em jovens foi morrendo sucessivamente, renascendo em cada evolução da personalidade. A criança e a ingenuidade que tivemos desapareceu nas malhas do tempo para dar origem a uma personalidade de adulto diferente... não necessariamente menos ingénua.
Ninguém lamenta propriamente a morte da criança que foi, que resultou de um adquirir da experiência ao tornar-se adulto... aquilo que causa lamento na maioria dos mortais será a antevisão de um fim sem continuidade. Daí surge o refúgio espiritual em diversas crenças...

O problema é portanto colocado numa descontinuidade, num fim previsto.
Aquilo que é desconsiderado pelo próprio é a sua experiência de descontinuidade - ao sonhar!
Quando caímos na cama, estamos prontos a abandonar, sem problemas, sem medos, a nossa personalidade.
Vamos entrar numa outra percepção, e quando lembramos os sonhos, é-nos revelado que fomos naquele espaço de tempo alguém diferente. Alguém que apareceu do nada, que viveu uma pequena aventura, que não sabia que estava a dormir, e que encarou aquela situação como real.

Neste caso não há um medo de descontinuidade, pela experiência adquirida... adormecemos, mas não morremos, e como antevemos voltar ao estado anterior ao sonho, a situação é tida como passageira.
Imaginemos que um ser só teria o seu primeiro sonho, só dormiria pela primeira vez, aquando da puberdade, por exemplo... nesse caso sem dúvida que sentiria alguma angústia por uma experiência que consideramos banal, mesmo que lhe garantissem que voltaria a acordar.

Para quem já teve a experiência de um sonho em que morre, sabe perfeitamente o que acontece - acorda!
E acorda porquê?
- Acorda, porque o cérebro não sabe/pode fazer a continuação de um sonho em que morre.
O indivíduo continua a pensar, e no entanto deveria estar morto!
Entra numa contradição e a solução aparece miraculosamente - afinal era apenas um sonho!
Assim, tudo encaixa logicamente, e a contradição desaparece...

A questão que se coloca então é a seguinte, por que razão se há-de pensar ser diferente com a vida normal?
Porque o indivíduo vê os outros morrer, e por reflexão assume que irá desaparecer tal como eles... mas isso também não é diferente no sonho! É claro que os personagens do sonho vão desaparecer quando o indivíduo acorda - logicamente o universo dos sonhos não é o mesmo universo onde se acorda.
Ou seja, haverá uma separação de percursos, mas não necessariamente um fim. Os elementos do sonho ficaram na memória, internamente... afinal onde sempre estiveram, e o sujeito entra numa nova realidade, que afinal já conhecia, mas que lhe tinha sido momentaneamente vedada, enquanto sonhava.

Não sabemos porque fazemos isso, o sonho não aparece como controlado por nós, e é suficientemente estranho abdicarmos da nossa personalidade, a ponto de não termos consciência de que estamos a sonhar. Entramos num novo personagem, num universo que pode até ter novas regras, diferentes das que experienciamos - há quem sonhe ser capaz de voar, e isso aparece como possível e plausível. Pode haver a vontade de permanecer nesse sonho, caso seja positivo, mas inevitavelmente termina e entramos numa nova consciência... que não é encarada como nova, pois o período de fantasia é apenas um lapso temporal numa vida diferente. Mas é uma descontinuidade...
Com essa descontinuidade deveríamos aprender a não temer outras descontinuidades... como a morte!

Na Dinamarca, após Kierkegaard, que se inspirou fortemente na filosofia indiana, também Hans Christian Andersen acabou por fazer uma interessante fábula em 1850, denominada "Olavinho fecha os olhos", onde Morfeu e a Morte aparecem como irmãos! Desmistifica por completo o pesado conceito da Morte, comparando-o a um irmão mais velho do Sonho, identificado a Morfeu!

Não é difícil perceber que estes assuntos estiveram presentes desde a alvorada dos tempos humanos, mas só foram passando de forma alegórica, pela forte censura, que foi sendo recorrente. As pretensas originalidades dos filósofos gregos, ou ainda da Idade Contemporânea, pouco mais são do que adaptações autorizadas, já com alguma roupagem despida da alegoria poética.


Verbo
É curiosa a religiosidade ocidental, que assume uma entrada num outro universo.
Essa concepção não é exclusiva de fenómeno divino, ou seja, é perfeitamente plausível a recuperação de corpos dados como mortos, dentro do materialismo. Eventualmente, com uma tecnologia mais avançada do que aquela que conhecemos, seria possível recuperar um sujeito dado como morto. Para quem acredita no absoluto materialismo, chega-se ao ponto de se congelar para a posterioridade.
Isto é totalmente ridículo, no sentido em que não se percebe que o pensamento nunca é algo estático... não existe como estático no tempo.
A nossa linguagem é prova disso.
Os verbos denotam sempre uma acção temporal, nem que seja a mera contemplação.
O "ser" invoca um tempo prolongado, indefinido ou infinito, enquanto o "estar" refere algo temporário.
Querer congelar o pensamento é como querer congelar o movimento de uma flecha... podemos ficar com a flecha, mas nunca podemos ficar o seu movimento.
Querer congelar o pensamento é como querer ouvir música num único instante!

Suponhamos que sim, que o indivíduo congelado acordava num ambiente sofisticado, no futuro... se quem o acordasse o fizesse crer que tinha acabado de chegar ao Céu, ele ficaria convencido?
Ou seja, basta a capacidade de ressuscitar um corpo aparentemente morto para se invocar uma ocorrência divina?
A palavra habitualmente usada é Céu... como se houvesse no espaço exterior essa capacidade. Houve sempre a tradição natural de um funeral rápido, onde o corpo seria definitivamente ocultado.
Ou seja, uma civilização extraterrestre com uma tecnologia avançada que substituísse um corpo, dado como morto, por uma réplica, recuperando o original para uma vida suplementar, poderiam essas entidades ser vistas como deuses?
Mas... nem é preciso ir tão longe! Há organizações estatais que simulam a morte do indivíduo, fazendo-o reaparecer com outra identidade, numa outra parte do mundo... e quem por acaso reconhecer essas pessoas pensará estar a ver uma assombração! Digamos que seria como esconder Elvis, e fazê-lo reaparecer pontualmente em alguns pontos dos EUA...

Tal como a filosofia não teve nenhum avanço especial nos últimos séculos, também não é claro que a parte científica esteja em progressão original face a uma antiguidade distante (basta invocar o mecanismo de Anticitera, ou as baterias de Bagdad, para se perceber que houve conhecimento escondido durante milénios).

Convirá assim distinguir uma simulação de ressurreição, com eventual recuperação do indivíduo num contexto material possível, de um efectivo reaparecimento num contexto de efectiva morte, onde seria impossível qualquer recuperação física. Num caso o indivíduo poderá aparecer num contexto novo, sujeito ao desígnio de quem o recuperou, no outro caso o processo será natural.
É aqui importante distinguir a prática indiana - que ao incinerar o corpo torna impossível qualquer recuperação física, da prática de enterramento ocidental - onde alguns corpos permanecem em estado razoável que não excluem uma recuperação sofisticada!
Num contexto de recuperação por entidades dominantes pode ocorrer justamente uma situação particularmente estranha, onde o arbítrio dessas entidades decidirá um destino intermédio... e nesse novo contexto poderão existir lados que se degladiam, quais anjos e demónios, achando correcto ou incorrecto essa arbitrariedade intermédia.

A situação é assim complexa, e esse escrutínio de complexidade é normalmente evitado, terminando as discussões pela simples consideração da existência ou não de vida para além da morte... o tema deste texto é justamente mostrar que a discussão não termina aí!

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