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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Nebulosidades auditivas (54)

Num dia 26 de Abril de 1955 escreveu-se um poema que fez sucesso como canção catorze anos depois, num programa chamado Zip Zip, e passados cinco sobre esses anos, os eles e os nós já se confundiam em múltiplos nós entrelaçados, e afinal já se confundiam sonhos e pesadelos.
Eis o poema, na forma manuscrita:
Manuscrito da "Pedra Filosofal" com a data 26-4-55
publicado no livro Movimento Perpétuo (1956)
O autor era Rómulo Vasco da Gama, de apelido Carvalho, sob pseudónimo António Gedeão, e o cantor que levou a Pedra Filosofal ao programa de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado, em 1969, foi Manuel Freire:

Manuel Freire - Pedra filosofal (1969, edição Zip-Zip, 1970)
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer... como esta pedra cinzenta, em que me sento e descanso, como este ribeiro manso, em serenos sobressaltos. Como estes pinheiros altos, que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam, em bebedeiras de azul. 
Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo, num perpétuo movimento. 
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia... que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. 
Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos de uma criança.

A inspiração é inalada gratuitamente como o ar e exalada na soberba como criação própria.
Só que o caos das musas, nem sempre presenteia os artistas com harmonias que tocam uma nação, como foi o caso desta melodia que Manuel Freire compôs, a partir do notável poema de Gedeão.

Interessa-me a lista que Gedeão compilou, misturando progressos nacionais com internacionais... ou nem tanto! Quando chegamos aos passos de dança, e bastidores, é referido "Colombina e Arlequim", um tópico de Polichinelo, a que fiz referência desde o princípio no texto Pacífico, e também em inglês no Main Facts (2)... e ainda creio que noutro sítio (que não encontro). A que se segue a Passarola, e se não falámos de um pára-raios, em que os russos de Nevyansk reclamam primazia a Franklin, falámos duma locomotiva russa.
Já deveríamos ter falado do Padre Himalaya, e do seu alto-forno solar (pirelioforo), com que recebeu medalha de ouro na exposição de St. Louis de 1904.
A partir daqui, com a cisão do átomo, radar, ultra-som e televisão... pois isso só constaria no campo dos sonhos nacionais, dado o paupérrimo registo científico conhecido no Séc. XX!

Fica o mais intrigante.... "desembarque de foguetão na superfície lunar"!
António Gedeão escreve em 1955, numa altura em que nem tão pouco o Sputnik tinha sido lançado em órbita. Assim, este é o único elemento da lista que não passaria ainda de um velho sonho!
Manuel Freire lança a canção em 1969, no ano em que foi suposto assistirmos ao desembarque do homem na superfície lunar. Não deixa de ser uma coincidência... mas todos os pontos da lista eram finalmente verificados, quando em 1970 a canção foi lançada em disco.

É claro que na mais comum das interpretações, os "eles" eram "eles", mentecaptos autoritários do Estado Novo, incapazes de sonhar... e tudo o resto não interessa, quando dividimos o mundo entre bons e maus. Por graça dos fados, seremos sempre reconfortados pelo presente estar na mão de bons, salvadores dos males passados.

Resulta este texto do comentário de J. Ribeiro, e dos serenos sobressaltos.


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