Páginas

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Nebulosidades auditivas (56)

Num protesto em Baton Rouge, em 10 de Julho de 2016, uma simples fotografia tornou-se icónica:

World Press Photo 2017, Jonathan Bachmann fotografou o protesto de Ieshia Evans. (BBC article)

Ieshia Evans tomou a iniciativa de avançar para a estrada, e esperar pela detenção policial, no meio de um protesto anti-racista, originado pela morte de Alton Sterling.
A desproporção que a foto transmite é imensa. De um lado uma enorme força policial, equipada como se fossem "robocops", e do outro lado apenas uma manifestante, com a leveza da sua completa desprotecção, aguardando ser algemada. De um lado uma pequenez que exibe força física, do outro lado uma altivez, ou superioridade, com força moral.

Ao procurar a foto, o Youtube seleccionou a canção "Woman in Chains" dos Tears for Fears. Não sei se foi coincidência, ou se resulta já da Google ligar a sequência musical do Youtube às pesquisas, tal como faz com os anúncios.



Bom, interessa que já deveria ter incluído nesta lista outro tema:
"Sowing the seeds of love" (1989) Tears for Fears

Este vídeo esteve no Top durante várias semanas, e lembro-me perfeitamente de o ver. No entanto, nunca o vi... ou seja, à época, ignorei a letra e a simbologia.
Quando há uns poucos anos o voltei a ver, ficou diferente... não era apenas um vídeo qualquer, pretendia abanar a visão do homem comum, mostrando símbolos maçónicos, budistas, cristãos, coptas, com outros ícones religiosos, focando a pirâmide com olho na nota de 1 dólar.

A letra também era razoavelmente explícita...

(...) shook up the views of the common man
(...) The love train rides from coast to coast, DJ's the man we love the most
(...) As the headline says you're free to choose
There's egg on your face and mud on your shoes
(...) So without love and a promised land
We're fools to the rules of a government plan
(...) Read it in the books, in the crannies and the nooks, there are books to read
(...) Mister England sowing the seeds of love
(...) Time to eat all your words, Swallow your pride, Open your eyes

... mas não bastava ouvir, era preciso estar sintonizado para o problema da ocultação na sociedade, e manifestamente nessa altura, há 30 anos, não estava. 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A bestialidade e os caninos

Os clubes, salvo raras excepções nacionais, preferem usar símbolos de animais de grande potência. Os mais populares são certamente a águia, o leão e o dragão (este, no simbolismo imaginário). 
Acontece assim com os três clubes de futebol que preenchem o espaço televisivo, agora não tanto com o futebol, mas mais com a tentativa do total disparate, e ausência de bom senso, nos bastidores.
Esses símbolos são uma espécie de continuação da herança heráldica brasonada, misturando algumas tradições locais, da cidade ou região, com uma opção popular, casual e bestial.

Entre os mamíferos, a fuinha não se pode comparar com o leão, sendo este dez vezes superior em tamanho. No entanto, apesar do aspecto meio fofo ou balofo, a fuinha tem um dentes bem agressivos. Ainda que a dentição humana seja vista como carnívora, para onde foram os nossos caninos?

Numa tentativa ridícula e apalhaçada, algum humano tentaria amedrontar com a sua dentição?
Tentando imitar, por exemplo, um leão? 
Ninguém, no seu perfeito juízo, seria ridículo a esse ponto.
Ao contrário, uma doninha com 20 cm pode meter medo da mordidela usando pontiagudos caninos.

Exibindo os dentes: (à esquerda) um presidente leonino na Sporting TV

É claro que a agressividade humana também pode usar a boca como forma de exibir uma bestialidade natural, mas não é exactamente no mesmo aspecto directo que o faz uma fuinha, com os seus caninos... (é claro, excluímos aqui histórias de vampiros).
Exceptuando casos patológicos, ninguém vê a exibição da dentição humana um sinal hostil, talvez o veja como um esboço de bocejo ou riso. No entanto, já entende como hostil, quando se trata de um carnívoro.

Um problema, que é pouco mencionado na habitual história da evolução humana, é justamente essa completa perda de relevância da dentição canina.

Os humanos têm uma dentição nada adequada a carnívoros, especialmente se comparados com outros primatas, como por exemplo, com chimpanzés e orangotangos (ambos omnívoros), ou mesmo com gorilas (herbívoros).  

Os diferentes tipos de dentição em herbívoros, carnívoros e humanos. [img]
 
A dentição em chimpanzés (à esq.), austrolopitecos (ao centro), e humanos (à dir.) [img]

Uma das formas que foi usada para classificar os "hominídeos" foi justamente essa aproximação à dentição humana... ou dito de outra forma, seria mais complicado dizer que o crânio de um primata com grandes caninos seria "hominídeo". Desde os austrolopitecos aos neandertais, a dentição deixou de exibir caninos salientes.

Há herbívoros com grandes caninos, como é o caso do gorila, mas não sei se será fácil encontrar mamíferos carnívoros ou omnívoros sem eles, exceptuando os humanos. Outro problema é o tamanho do intestino, que é grande nos herbívoros e nos humanos (~ 6 metros), enquanto nos carnívoros é bastante mais pequeno (no leão ~ 1 metro e meio).

Aquilo que os nossos dentes nos mostram, é que a nossa ascendência não se deu pelo lado carnívoro, e é mais provável que se tenha dado por um ascendente herbívoro. 
Talvez fosse apenas predominantemente herbívoro, pois conforme já fui insistindo, há características humanas, nomeadamente a ausência de pêlos, que se coadunam mais com uma vida em ambiente aquático, próximo de lagos ou mares. 
Não se tratariam propriamente de grandes nadadores, já que nenhum grande primata nada, mas seriam capazes de beneficiar da postura vertical para ir longe na água junto à costa, em lagos ou mares calmos. Isso permitia escapar de alguns predadores, e também empreender no pescado. 
Os dentes caninos já não seriam tão relevantes no consumo de pescado. Os mamíferos piscívoros têm também caninos proeminentes (foca, leão marinho, lontra, etc...), mas não é o mesmo com o caso dos golfinhos.

O essencial é que o ímpeto carnívoro não parece estar na nossa essência, ainda que pareça ser notória alguma exigência no consumo de proteínas. Isso pode ter começado inicialmente com uma vida que foi ficando dependente de outros frutos, os "frutos do mar", e que depois terá sido compensada em ambientes menos costeiros com uma dedicação à caça. Só que parece que essa apetência pelo consumo de carne foi evoluindo com o desenvolvimento de armas ou utensílios adequados, e não seria uma apetência inicial dos hominídeos.

Não me parece que houvesse algum inconveniente na existência de caninos salientes, exceptuando o perigo da bestialidade se traduzir numa dentada mortal nos infantes, algo que acontece com os chimpanzés, e que algumas fêmeas poderão ter decidido ser um desagradável inconveniente estético.
Podem ter-se livrado dessa bestialidade, mas não de todas as bestialidades que iriam sair boca fora...

Pior, se nos livrámos dos caninos, não nos livrámos de uma vontade de fidelidade canina.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Re-creio

Caso alguém perguntasse qual seria o grande desígnio da humanidade, por estes dias responderia - "... um eterno recreio", ou mais apropriadamente ao dia de hoje, "... um eterno carnaval".
"Vai passar "- Chico Buarque de Holanda

Bom, e por que não acontece? ... por medo!
Vai passar?

1) Medo de irrelevância.
- Vai passar, legal! Mas vou desfilar, ou não?
- São milhares de pessoas, você é apenas mais um!
- Mas eu, sou eu! Também tenho direito a desfilar na frente!
- Qual é o problema?
- Ele quer ter protagonismo, que ir na frente do corso!
- Tudo bem, você vai para a cabeça do corso, para o carro principal!

2) Medo de relevância:
- Vai passar, legal! Mas, espera... ainda é legal?
- Não, não foi autorizado!
- Então, vou na frente de um desfile proibido?
- Foi o que você pediu!
- Não, não mereço! Quero passar despercebido...

Na relação que estabelecemos com os outros, o que sobressai é o medo:
- Quando a situação é boa, sobressai o medo de não ser notado.
- Quando a situação é má, sobressai o medo de ser notado.

O apogeu de alegria não acontece quando há apenas uma alegria individual, acontecerá quando toda a comunidade acreditar que já não tem razão para ter medo de coisa alguma.

O raciocínio humano é profundamente engraçado!
Quando se trata de ser vencedor da lotaria, o milhão de perdedores não interessa. O próprio reclamará o direito a ser vencedor. Mas se for uma maleita rara, que atinge um em cada milhão, tudo se inverte.

A vontade de pertencer ao grupo dominante, a vontade que o indivíduo tem de se destacar, é tão forte, que tolda qualquer raciocínio objectivo.
O indivíduo que de manhã saúda efusivamente o ditador, com uma mudança de regime ao meio-dia, tenderá a compensar a atitude com uma efusiva repulsa ao final da tarde.

Em 1989, na antiga RDA, meses antes de cair o Muro de Berlim, o regime anunciava votações de 98.85% nos candidatos comunistas. Menos de um ano depois, em 1990, o partido comunista obteve menos de 17% nas primeiras "eleições livres".
Mais perto, num congresso em Matosinhos, José Sócrates teve em 2011 uma reeleição no PS com 93,3% dos votos, pouco antes de perder as eleições nacionais com 24% dos lugares.
Só quem nunca esteve em assembleias, é que não percebe a dificuldade de ser o único com o braço no ar... Ter razão é um sério inconveniente, quando a maioria erra por sistema.
Porque a razão da maioria, é uma razão em si mesma, mesmo sendo absurda.

Liberdade é ausência de medo.

Os grupos encontram a sua cola numa lógica canina de fidelidade.
A ausência de medo, é aí um inconveniente.
Num grupo, um membro deve ter medo de estar isolado. A lógica dos grupos é desenvolver uma corte de fidelidade cega. Quem repele a fidelidade é uma aberração isolada.

As ideias... as ideias são apenas uma desculpa para colar o grupo inicialmente. Uma vez estabelecida a hierarquia da liderança, as ideias passam a ser as da liderança, as dos líderes, e tudo o resto desvanece.
Para uma eterna luta de ideias, estas precisam de adeptos racionais, que não as descartem à primeira mudança de clima. Por isso, todas as ideias, que visam apenas fortalecer a lógica de grupo, e que vão desde perseguição, terror, horror, engano, falsidade, aproveitamento, exploração, exclusão, etc... continuam a exibir o seu pragmatismo eficiente, e a impor um medo subjacente.

Recreio?
As crianças querem brincar desde que haja um pai que assegure a segurança.
E por isso é tão fácil fazer passar os ditadores como pais da nação.


sábado, 10 de fevereiro de 2018

Nebulosidades auditivas (55)

Entre 1991-96 a situação na Jugoslávia atingia o que antes era impensado antes... a região balcânica viu-se envolta num conflito de nacionalidades, como consequência do fim da cola comunista que unia diversas nacionalidades como um único país. Enquanto o pai Bush se entreteve com a 1ª Guerra do Golfo, dando a ideia de um policiamento mundial, a comunidade internacional ficou praticamente estática, quando Belgrado reagiu violentamente às tentativas independentistas da Bósnia, e quando a secessão da Eslovénia e Croácia era já um facto consumado. Como Madrid tem dado boa conta, nenhuma "capital" perde ligeiramente a sua "província".

Sarajevo ficou cercada por tropas sérvias entre 1992 e 96, quando presumidamente perto de 20 mil militares sérvios, ou alinhados com a Sérvia, foram mantendo o cerco à cidade, no sentido de evitar a secessão da Bósnia. Foi o cerco mais prolongado do Séc. XX, ultrapassando o tempo dos cercos nazis de Leninegrado e Estalinegrado (actualmente, St. Petersburgo e Volvogrado), durante a 2ª Guerra Mundial.
A vida em Sarajevo, no período do cerco, com a população aterrorizada por snipers e milícias, era suficientemente complicada, mas mesmo assim foi organizado um concurso "Miss Sarajevo sitiada", em 1993, em que Inela Nogic foi a "miss" escolhida. O concurso organizado num palco subterrâneo teve as participantes mostrando um cartaz dizendo "Don't let them kill us"...

Este vídeo dos U2 com Luciano Pavarotti, "Miss Sarajevo", ilustra esse momento algo absurdo, tendo por base um documentário com o mesmo nome de Bill Carter. Afinal um simples momento de políticas instáveis e inseguras, podem transformar uma pacata vida citadina numa constante aventura de sobrevivência.
U2 e Luciano Pavarotti - "Miss Sarajevo" (1995)

Dici che il fiume trova la via al mare; E come il fiume giungerai a me; Oltre i confini e le terre assetate;
Dici che come fiume; Come fiume l'amore giungera;  L'amore e non so piu pregare;
E nell'amore non so piu sperare; E quell'amore non so piu aspettare.

Sarajevo, uma das mais belas cidades europeias, com as suas múltiplas pontes sobre o rio Miljacka.
Em 1984 acolheu os Jogos Olímpicos de Inverno, com instalações usadas e destruídas há 25 anos durante o cerco.
Foi na Ponte Latina que foi assassinado Franz Ferdinand em 1914... o pretexto bélico para a 1ª Guerra Mundial. 

Dizem que o rio encontra a via do mar; e como o rio chegarás a mim; além dos confins e da terra árida;
Dizem que como o rio, como o rio, o amor chegará; o amor.... e não sei mais rogar;
E em amor não sei mais esperar; e aquele amor não sei mais aguardar.


"The Butcher of Bosnia" (BBC, 2017)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Nebulosidades auditivas (54)

Num dia 26 de Abril de 1955 escreveu-se um poema que fez sucesso como canção catorze anos depois, num programa chamado Zip Zip, e passados cinco sobre esses anos, os eles e os nós já se confundiam em múltiplos nós entrelaçados, e afinal já se confundiam sonhos e pesadelos.
Eis o poema, na forma manuscrita:
Manuscrito da "Pedra Filosofal" com a data 26-4-55
publicado no livro Movimento Perpétuo (1956)
O autor era Rómulo Vasco da Gama, de apelido Carvalho, sob pseudónimo António Gedeão, e o cantor que levou a Pedra Filosofal ao programa de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado, em 1969, foi Manuel Freire:

Manuel Freire - Pedra filosofal (1969, edição Zip-Zip, 1970)
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida, tão concreta e definida, como outra coisa qualquer... como esta pedra cinzenta, em que me sento e descanso, como este ribeiro manso, em serenos sobressaltos. Como estes pinheiros altos, que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam, em bebedeiras de azul. 
Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo, num perpétuo movimento. 
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia... que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar. 
Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos de uma criança.

A inspiração é inalada gratuitamente como o ar e exalada na soberba como criação própria.
Só que o caos das musas, nem sempre presenteia os artistas com harmonias que tocam uma nação, como foi o caso desta melodia que Manuel Freire compôs, a partir do notável poema de Gedeão.

Interessa-me a lista que Gedeão compilou, misturando progressos nacionais com internacionais... ou nem tanto! Quando chegamos aos passos de dança, e bastidores, é referido "Colombina e Arlequim", um tópico de Polichinelo, a que fiz referência desde o princípio no texto Pacífico, e também em inglês no Main Facts (2)... e ainda creio que noutro sítio (que não encontro). A que se segue a Passarola, e se não falámos de um pára-raios, em que os russos de Nevyansk reclamam primazia a Franklin, falámos duma locomotiva russa.
Já deveríamos ter falado do Padre Himalaya, e do seu alto-forno solar (pirelioforo), com que recebeu medalha de ouro na exposição de St. Louis de 1904.
A partir daqui, com a cisão do átomo, radar, ultra-som e televisão... pois isso só constaria no campo dos sonhos nacionais, dado o paupérrimo registo científico conhecido no Séc. XX!

Fica o mais intrigante.... "desembarque de foguetão na superfície lunar"!
António Gedeão escreve em 1955, numa altura em que nem tão pouco o Sputnik tinha sido lançado em órbita. Assim, este é o único elemento da lista que não passaria ainda de um velho sonho!
Manuel Freire lança a canção em 1969, no ano em que foi suposto assistirmos ao desembarque do homem na superfície lunar. Não deixa de ser uma coincidência... mas todos os pontos da lista eram finalmente verificados, quando em 1970 a canção foi lançada em disco.

É claro que na mais comum das interpretações, os "eles" eram "eles", mentecaptos autoritários do Estado Novo, incapazes de sonhar... e tudo o resto não interessa, quando dividimos o mundo entre bons e maus. Por graça dos fados, seremos sempre reconfortados pelo presente estar na mão de bons, salvadores dos males passados.

Resulta este texto do comentário de J. Ribeiro, e dos serenos sobressaltos.