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segunda-feira, 16 de junho de 2014

A tempo o tempo

Numa ilustração da Bíblia dos Jerónimos (Séc. XV) está uma imagem representando a criação divina:

N-PRINCI-PI-Oª-CREA
(Nota: a designação do número Pi só é adoptada no Séc.XVIII)

Não há que iludir coisas, com interpretações modernas.
A ideia vigente no final do Séc. XV, era a de vários céus esféricos que rodeavam a Terra. A rotação desses céus justificava o movimento das estrelas, para além da rotação terrestre.
Do ponto de vista puramente astronómico a ideia é ainda hoje correcta, diga-se o que se disser, o movimento é relativo, e os modelos heliocêntrico e geocêntrico são equivalentes para efeitos de observação.
Do ponto de vista de observação, aquilo que acreditamos serem outras galáxias são pequenas manchas nos telescópios... tudo o resto é crença alicerçada por algum nexo científico. Mesmo com telescópios convencionais, não foi ainda visto nenhum círculo de luz noutras estrelas, apenas o Sol tem disco solar visível. As estrelas são ainda pontos de emissão de luz.

Acima de todos os céus estelares, na figura acima, estaria o céu divino, onde encontramos a figura de Deus criador.

Criar
Primeiro, interessa perceber o que é criar.
A criação é uma transformação. Algo é alterado de um estado inicial para outro.
A responsabilidade dessa alteração ser imputada a um processo inteligente autónomo é que é outra coisa, porque essa própria vontade fica a carecer de justificação (que não se encontra em si mesma, a menos que seja inerente, natural e imutável).
Ou seja, onde está a vontade que provoca a vontade?
Nós não temos problema em não controlar a nossa vontade... ou, para quem se julgue com certezas de controlo - não controlou a vontade de controlar a vontade! Coisa diferente é atribuível a Deus, mas com o mesmo problema lógico inerente - o paradoxo do pensador. Ou seja, o processo de controlo ao prolongar-se indefinidamente identificar-se-ia com todo o universo, o que remete de novo à noção divina de Espinosa.

As transformações que levaram a este universo, podem ou não ter um observador.
No entanto, é claro que o observador não pode existir antes do observável, e portanto o observável antecede sempre o observador. No entanto, para efeitos do observador, nada existia antes de si. As remissões ao passado ocorrem sempre no presente.

Agir
Segundo, interessa perceber o que é uma acção.
Uma acção é uma ligação entre duas mudanças. 
Uma é chamada causa, outra é chamada efeito
A diferença é que a observação de uma antecede a observação da outra.
Se a cada vez que carregar num botão acender uma luz, associo os eventos.
Para nós isso implica um acto físico, mas podemos considerar que o acto físico é apenas um intermediário entre a decisão de carregar no botão e o acender da luz.
Portanto, ignorando processos intermédios, é o pensamento que age sobre o acender da luz.

De facto somos observadores de duas partes do universo:
- uma está em nós, e chamamos-lhe pensamento,
- outra é obtida por via dos sentidos, e chamamos-lhe realidade.
A ideia de que controlamos o pensamento, para além de uma mera observação, chama-se sanidade mental. Aceitamos os pensamentos que temos, não começamos a querer deixar de pensar no que estamos a pensar. Esses pensamentos encaixam no raciocínio por um nexo. A sanidade é um processo de encaixe da observação dos nossos pensamentos. Do outro lado está o que não encaixa, esse devemos entender como externo. A modelação científica é uma tentativa sucessiva de encaixe do exterior num nexo interior.

Observador e Observado
Ora, o que acontece se houver um desfasamento entre o observador e observado?
Ou seja, se o observado chegar primeiro ao pensamento do que aos sentidos?
Nesse caso, o que pensava reflectir-se-ia no que iria observar.
Esse simples desfasamento origina a ideia de que o pensamento cria o que via.

Portanto, como vemos, é perfeitamente possível existir um processo de associação, que pode responsabilizar o observador pelo que vê, podendo ser natural e alheio.
Mais que isso, trata-se de um processo de reflexão temporal.
Se aceitamos que o acto de observação é posterior ao observado, o que estamos aqui a falar é só do processo oposto - a observação antecede o observado, e é entendida como pensamento interno, antes de ser confirmado por outra via, digamos dos sentidos...

Neste caso estabelece-se uma harmonia completa, porque há uma reflexão perfeita entre sentidos e pensamento. O universo visto e o universo pensado coincidem como num espelho.

Tudo isso pode ocorrer até que a complexidade deixa de ser trivial.
Se os processos mentais forem em número finito, começa a deixar de haver um ajustamento se as observações tiverem potência infinita. Como a parte inteligível do observador é apenas uma parte do universo, distinta do observado, há sempre uma falha entre todas as observações possíveis e as realizadas. Porquê? Porque, em última análise, falham as observações das observações.
Ou seja, se até um determinado ponto a ordem encontrada num pensamento pode ser suficiente para a complexidade observada, quando o observador se vê a si próprio, isso deixa de ser possível.
Deixamos de estar num mundo de ordem previsível, porque a opção de pensamento é uma opção caótica, algo arbitrária, que entendemos como livre, mas que é apenas uma maneira de dizer que estamos no universo que é nosso, e que é nosso porque queremos, porque decidimos, mas também sem querermos, já que a escolha é inata e indissociável do próprio pensamento.

Anima
Assim, os humanos, que aparentemente resultam de um processo de programação bem definido no DNA, ao definirem pensamento autónomo a essa programação, passaram a ser imprevisíveis. As suas acções passaram a ter também origem num caos, algo diabólico, se entendermos que o resultado aleatório tanto pode dar para o bom quanto para o mau.
Para um observador externo, uma criação com vontade própria não é controlável. Enquanto observador externo de várias possibilidades poderá ter uma visão antecipada das ocorrências e tentar influenciar o melhor desfecho, de acordo com o seu conhecimento. O seu conhecimento pode até ser total do mundo formado, mas não do mundo que se irá formar... porque eternidades há muitas, mas a sua complexidade aumenta com a complexificação universal. Ou seja, o que parecia antes um beco, passa a ter fissuras que abrem passagem. Depois, é claro, o último observador não tem maneira de saber que é o último... se é que isso interessa para alguma coisa!

É entendível que uma tentativa de programação, de condicionamento das acções humanas, tendo em vista uma determinada ordem pudesse levar a um estado de equilíbrio controlado entre o pretendido e o tido. Porém, isso significa uma lobotomia do desejo, ou seja da necessidade de infinito, de uma transcendência para além da programação de uma paz animal. Apesar de em latim "alma" ser "anima", não é algo condicionável a simples desejos animais. O paraíso de um símio não é um paraíso humano.

Convém perceber a dualidade mais uma vez.
Numa fase inicial, a observáveis finitos, as partes, as relações seriam igualmente finitas.
As partes, as relações, são sempre em número superior ao observável. Ou seja, se os pensamentos se condicionam por uma realidade, a sua potencialidade para outras realidades é maior. Aumentando a complexidade da realidade observável, as suas relações também se poderiam complexificar indefinidamente... até ao ponto em que começam a ficar redundantes. Aí surgem as noções abstractas, que já estão para além dos observáveis ocasionais. A associação de pensamento a um corpo físico é uma constatação circunstancial.
Não havendo uma circunscrição a corpo físico, podemos ter entidades pensantes sem essa associação, que vivem num campo tão etéreo quanto as entidades abstractas que concebemos.
Porém, essas entidades teriam o pensamento condicionado aos observáveis. 
Quanto maior fossem as possibilidades de raciocínio nos observáveis, maior seria a capacidade de raciocínio potencial fora deles. Até que ponto? Até ao ponto de esgotamento das noções por redundância. Ou seja, até ao ponto em que o observado equivaleria em complexidade ao observador, num determinado universo. Um universo condicionado pela lógica, que seria autossuficiente e completo em consistência.

Uma coisa é ter conhecimento pela observação, outra coisa é ter conhecimento pela dedução.
O conhecimento pela observação é semelhante a ter um programa de xadrez que nos dá a melhor jogada, simulando todas as que consegue. O conhecimento pela dedução não é saber construir o programa, é saber a razão pela qual uma jogada pode ser melhor que a outra, sem essa antevisão de possibilidades. A razão é um nexo baseado nos nexos do conhecimento anterior e não numa antevisão gratuita do futuro. Essa visão gratuita do futuro não está efectivamente disponível. Do futuro invariante apenas podemos saber as noções invariantes, comuns a todas as linguagens... tudo o resto tem que ser deduzido a partir daí. A consistência de um universo incompleto só poderia ser feita assim, caso contrário entraríamos numa repetição trivial.
... e tudo isto já tinha sido dito por outras palavras 



(Texto escrito a 3 de Junho de 2014)

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