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segunda-feira, 25 de março de 2013

Hélgia (4)


- Gostava de voltar à história do Joãozinho...
- O quê?
- Pode parecer estranho, mas devemos voltar a essa história. Quem a inventou, como exemplo, deixou o rapaz numa situação atroz... ferido e sem ajuda.
- Só podes estar a gozar...
- Não estou. 
- Fui eu que fiz a história, e não vejo por que razão havia de continuar, ou dar-lhe outro desfecho.
- É aí que eu quero chegar. Quem ficou confortável com esse desfecho?
- A mim não me afecta minimamente, era uma situação hipotética.
- Não sei até que ponto o era... ou seja, havia ou não contornos de verosimilidade?
- Que diferença isso faz? Não tem nenhum correspondente real.
- Será que não tem?
- Onde queres chegar?
- A questão é que a história é banal, mas corresponde de certa forma a um medo, a uma invocação de injustiça em situações reais. Quanto mais verosímil for uma história, maior é a possibilidade de despertar um medo real.
- Sim, aquela e mais umas quinhentas semelhantes...
- Correcto. A questão é - consegues combater o Leviatã gerado pelo conjunto de medos fabricados pelas diversas histórias?
- Bom, a começar terias que começar por combater o medo gerado pela morte... ou pelo sofrimento.
- Sim, terias que partir para noções abstractas, e não resolver pontualmente o problema deste ou daquele Joãozinho. Ao contrário do que é habitual remeter, a questão não está no personagem, na sua "culpa" para se colocar numa situação desfavorável. Isso é uma maneira de mascarar o problema...
- Estamos de acordo, um outro enquadramento poderia levar ao mesmo tipo de "desgraça"...
- Temos um Joãozinho a sofrer e sem ajuda... onde está o problema, o desconforto que a história induz?
- A possibilidade de isso ocorrer a qualquer um de nós?
- Isso, e o não-desfecho... a suspensão "ad eternum" da situação.
- Qualquer um imaginará que ele eventualmente será encontrado, e lhe será prestada ajuda.
- Será? Ou não há aqui ninguém quem considere que ele poderá manter-se assim durante bastante tempo, ou até morrer em consequência da não assistência?
- O que queres dizer é que ainda que pensemos num ocasional desfecho positivo, não é com isso que vamos eliminar a eventualidade de desfecho negativo, certo?
- Certo! 
- E daí?
- Daí, isso induz um medo, uma situação de injustiça, e um sentimento de revolta circunstancial, pela nossa impotência em tais situações.
- E como pretendes inverter isso?
- Há muito que foi criada uma compreensão adicional para lidar com esses medos. Os infortúnios na realidade terrena teriam uma compensação numa dimensão superior. Essa dimensão apareceu como necessária para satisfazer um balanço de equilíbrio emocional individual.
- Wishful thinking...
- Sim. Repara, um predador vai atacar uma presa para se alimentar... aquela e não outra. Precisará apenas de uma, circunstâncias aleatórias levam a uma escolha e não outra... uns podem ver fraqueza na presa atingida, mas é indiferente. Há sempre circunstâncias externas que determinam a escolha. A vítima não assume esse papel, há circunstâncias que o determinam.
- Sim, por exemplo, os genes... sobrevivência dos mais fortes, mais aptos.
- Certo. Vamos então por esse raciocínio típico. O objectivo seria produzir a espécie mais apta à sobrevivência?
- Por que não?
- Qual a lógica de constituir corpos frágeis, com uma morte programada?
- Bom, porque isso é uma das facetas evolutivas. Geraram-se várias possibilidades. Maior longevidade não levava a evolução tão rápida... era injusto para os mais novos, em termos de competição.
- Reparaste que usaste a noção de justiça? O que tem a justiça a ver com a evolução, com a competição?
- Usei apenas alegoricamente. Uma espécie que se renove mais, produz mais soluções evolutivas.
- Por outro lado, desperdiça as que já tem por simples limitação do tempo de vida.
- Desperdiça os indivíduos, não os elementos da espécie... uns substituem os outros.
- Sim, e o que os distingue funcionalmente, sem ser a sua adaptação genética a um contexto particular?
- Os seus genes "vencedores" acabaram por ser resultado desse contexto, conforme disseste.
- Ok. Podemos concluir que uma espécie de sucesso seria aquela que se adaptasse a uma maior variedade de contextos, por mais adversos?
- Sim, a que conseguisse sobreviver na maior multiplicidade de contextos.
- Acabou por ocorrer isso com a espécie humana... teve a capacidade de sobreviver nos mais diferentes contextos.
- No entanto, continua frágil a uma grande multiplicidade de ameaças. Nomeadamente tem em si própria a maior ameaça.
- Como todas as espécies de sucesso... muitas vezes evoluiram por competição interna. Eu sei onde queres chegar, mas não é apenas uma questão genética, é agora também uma questão cultural. 
- Exacto. Para além da transmissão genética, é mais importante a questão educacional, cultural, o legado da tribo... 
- Sim, no plano da realidade terrestre é isso que conta. Uma tribo fraca, com pruridos éticos, arrisca a extinção pura e simples.
- Mas necessita da colaboração, porque foi essa colaboração comunitária que lhe permitiu desenvolver a sua cultura.
- E daí? Conforme já dissemos, as elites aproveitaram-se da colaboração transparente, mas foram eficazmente opacas às massas servidoras.
- Mas, ainda que tenham tentado algum ecletismo, não constituiram nova espécie. Aliás, se é fácil encontrar espécies animais diferentes, por simples isolamento territorial, isso não tem registo humano semelhante.
- Não houve tempo...
- Ok. E qual seria então a nova evolução, a qualidade extra, que determinaria a nova espécie?
- Sei lá, isso é genético... uma melhor cognição?
- Exacto, isso é genético. Geneticamente nós não interferimos, podemos fazer castas, mas não determinamos espécies. As informações que dispomos é que isso nem sequer tem resultado mesmo com canídeos... com trabalhadas selecções de raça.
- E esse processo foi bem apurado, imagine-se o tempo e provável ineficácia em humanos. A contrario, a dar-se alguma alteração genética seria sobre os que sofrem mais provações, pois é aí que a melhor adaptação cognitiva, em condições muito adversas, levaria a aparecer alguém mais dotado cognitivamente.
- Onde queres chegar?
- Quero retirar de discussão a ilusão do "superhomem" lançada por Nietzche, e alguma filosofia de eugenia, que sabemos florescer nos cantos obscuros, nomeadamente na "engenharia genética". 
- Porquê?
- Porque é ridícula, em vários aspectos. Primeiro, porque há vantagens na imperfeição... e a história do Joãozinho é boa para ilustrar isso.
- Porque o Joãozinho não teria lugar nessa sociedade?
- Em parte. Uma sociedade que não admite erros, não percebe o que isso acarreta. Não sabe o que é a completa previsibilidade, e só por isso a procura desalmadamente.
- Sim, quanto melhor modelarmos o exterior, mais nos identificamos com ele. Passamos a depender da imprevisibilidade dos nossos semelhantes para nos surpreendermos. Não é à toa que a sociedade humana se tornou introspectiva, e as notícias que mais nos apoquentam dizem respeito a questões sociais. As catástrofes naturais assolam uns poucos, face à quantidade afectada pelo resultante de acções humanas.
- Onde entra aí o Joãozinho?
- O Joãozinho entra na obstinação. Uma sociedade obstinada na individualidade não envia auxílio. Cada indivíduo saberia isso. Saberia que estava por sua conta própria, esse seria um medo induzido. Ninguém esperaria outra coisa dos seus semelhantes.
- Exacto, ao contrário do que se faz passar, o medo nunca deve ser reportado à existência de um tipo perigoso, ou de um grupo perigoso. Mesmo que eles não existam, podem existir, e o medo estará presente. A questão que se coloca é saber se a sociedade criada gera ou não, com facilidade, indivíduos ou grupos perigosos. O medo é resultado dessa estrutura social e não dos indivíduos.
- Pois, um dos problemas está nessa individualização. Quando se estimulam vantagens egocentricas, o indivíduo irá agir nessa lógica, numa lógica de protagonismo. Isso será sempre instável, porque vendo vantagens individuais, cada um, ou em grupo, procurarão afirmar-se comunitariamente por oposição aos outros, ou pelo menos em competição contra eles. Quanto maior for o valor dado ao ídolo, maior será a vontade de o imitar ou suplantar.
- O sucesso é uma palavra com sucessor...
- Sim, não pára, entra numa lógica de instabilidade social difícil de contrariar. A motivação de aperfeiçoamento deve ser inata, e feita no confronto do próprio com os seus limites. Se for vista numa lógica de confronto com adversários, esgota o seu campo de acção em alguém, e não é claro que vá além disso, porque o objectivo proposto foi alcançado.
- Regressando, a questão mais importante na história do Joãozinho é outra... a questão mais importante é colocar a separação entre perfeição e a entrada do caos.
- Entrada do caos?
- Sim, num mundo ordenado, previsível, a morte poderia não colocar um fim ao triste fado do Joãozinho. Ele poderia ser levado a nova dimensão, onde de novo seria alvo de injustiça "eterna". Só o efeito compensatório da imprevisibilidade o poderia libertar de tal sina.
- Claro, a idealização de uma eterna perfeição obriga, por lógica de raciocínio, lógica de máquina, a conceber o seu oposto, eterna imperfeição.
- Isso. Uma idealização de bem absoluto traz obrigatoriamente, por efeito automático, uma idealização de mal absoluto. Porém, sabemos que as chances de tudo correr mal, acabam, na soma dos tempos, a compensar com as chances de tudo correr bem. No registo de probabilidades não há uma tendência a um desequilíbrio perene.
- Ok... mas isso implica ir para dimensões superiores - divinas.
- Sim, mas o destino do Joãozinho acaba por estar na mente dos autores da sua história. A maioria dos leitores quereria, na sequela, compensar o Joãozinho pelo seu destino nefasto. Tal como a maioria das crianças quereria que alguma vez o Calimero não fosse injustiçado. A persistência do autor na injustiça é resultado de lógicas próprias, e ainda que fosse vício torturante do autor, seria mais despertar um problema de medos. Foi-se ao limite, ao ponto de máquina, de infalibilidade e intolerância, para consistência do desfecho. Isso não é um problema humano... ou aliás, só é um problema quando os humanos querem encarnar atitudes de consistência limite, próprias das máquinas, ou de deuses infalíveis e insensíveis.
- Aquilo que dizes, é que não é nenhuma ordem que traz o garante de justiça, mas sim o caos.
- Sim, porque é a imprevisibilidade que leva à abstracção de justiça. Quem fizer leis acaba por contemplar a possibilidade de ser uma vítima da sua aplicação. Isso só acontece por aceitar a imprevisibilidade. É ainda a imprevisibilidade que nos faz pensar que podemos ficar no lugar do outro, que nos obriga a essa reflexão.
- Não é só isso, ainda que haja uma justiça enquadrada na ordem, sobrepõem-se a ela as alterações aleatórias que emanam do caos. 
- Falas da situação limite pitagórica, em que o indivíduo é um espectador do "filme da vida". Acaba por ser sujeito a um conjunto de tragédias e comédias, de forma semi-aleatória, mas que se compensariam na soma dos tempos.
- Exacto. Com uma ordenação, uma decisão divina, não poluída por factores aleatórios, haveria almas condenadas eternamente ao bem ou ao mal. Isso levou às noções clássicas de paraíso e inferno... uma pequena experiência terrena teria estranhamente implicações irreversíveis para a eternidade. 
- Claro, esse seria um erro de Úrano e Zeus face a Gaia. A componente aleatória não pode ser ocultada da luz. Há uma ordem que nos dá previsibilidade, mas igualmente importante é o que escapa a essa ordem, que nos oferece a imprevisibilidade. A ordem deve acima de tudo estar no nosso raciocínio para podermos enquadrar a desordem que nos é oferecida pelos "filmes da vida".
- Caso contrário, ficaríamos máquinas alimentadas por sensações enfadonhas, previstas, que nada trariam de novo ao nosso entendimento. A surpresa é essencial na nossa essência... simplesmente somos produtos do caos e não de uma ordem simplificada. Quem encarna posições irredutíveis, aproxima-se de várias operações lógicas, previstas teoricamente, mas que pouco têm de humano. Insere-se enfadonhamente num mundo ordenado, mas ficará completamente desorientado quando o caos começar a afectar a ordem instituída, por necessidade de alguma pimenta na "alimentação".
- Nota ainda que é algo surpreendente que o Pi, o número que define a relação com o círculo, tenha uma sequência de dígitos que é um modelo de aleatoriedade, imprevisibilidade. O círculo, modelo de equidade, equilíbrio, tem no seu número de referência uma sucessão de dígitos de cariz aleatório.
- É assim, o Eu é convidado pelo Não-Eu para uma dança. Ficar sentado não é bem opção, a menos de isolamento, arriscando ficar agarrado a um boneco. O boneco pode até responder como queremos, não nos pisar os calos, mas saberemos mais tarde ou mais cedo que escolhemos ficar com bonecos. 
- A cada caminho determinado num sentido, feito solitariamente pelo Eu, o Não-Eu tende a responder da mesma forma, com um caminho em sentido oposto, igualmente determinado. Nenhum entra na dança, cada um segue o seu caminho isoladamente, ou em rota de colisão. 
- Deixa-me mandar uma piada. Se a Montanha do Não-Eu julga que pariu um rato, um rato (com grande ego) julgará que defecou uma montanha. 
- É a relatividade, no seu sentido mais puro...
- Saber dançar, é saber conduzir e ser conduzido no confronto da nossa vivência com os outros. Se impor uma condução torna os outros em bonecos, aceitar a completa condução dos outros levar-nos-à posição de bonecos.
- Se estamos atados à condição material de espectadores do "filme da vida", ninguém nos pode impôr que o apreciemos. O máximo que nos pode ser exigido (digamos, por Gaia) é que o critiquemos de forma racional, sinceramente e com uma compreensão abrangente (digamos, o caminho de Maia).


Massive Attack - Unfinished Sympathy

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