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terça-feira, 30 de julho de 2013

Propaganda

Poucos meses antes de morrer, Edgar Allan Poe, um ícone da literatura americana, publicou um dos seus poemas mais conhecidos:

Dream within a dream (Edgar Allan Poe, 1849)
Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow
- You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand
- How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?
Este poema foi incluído numa canção dos Propaganda - uma banda alemã dos anos 80
Propaganda - Dream within a dream 

... e o tema de "sonhos dentro de sonhos" foi explorado no filme "Inception" ("A Origem") de Christopher Nolan, lançado há três anos, em 2010. 

A tradução para português de "inception" como "origem" parece estranha, mas a própria palavra inglesa teria um significado desligado de memórias, conforme se verifica neste dicionário, e tem de facto etimologia latina que liga a "origem", ou o que seria mais apropriado "começo" ou "iniciação". 
A ligação da palavra "inception" ao implante de memórias teve origem no filme de Nolan (talvez fizesse parte de alguma "iniciação" do realizador noutras "andanças").

Tal como as memórias no filme, o termo "implantou-se", e hoje é usado em ciência... conforme se pode ver na mais recente pesquisa de Tonegawa (Nobel de Medicina, 1987):

(artigo na semana passada no Guardian, e no Público)

Talvez a primeira falsa memória em humanos seja a própria palavra "incepção"... pois dentro de alguns anos ninguém suspeitará que o termo nem sequer se aplicava a memórias, e só os mais curiosos encontrarão a "origem" da etimologia. Há "malta" que gosta de fazer piadas de puro malte connosco...

Adiante... o que liga estes temas? 
Várias coisas, apesar de um aparecer num poema do Séc. XIX, recuperado numa canção dos anos 80, outro num filme de há 3 anos, e outro numa investigação científica publicada na semana passada.
A principal razão para escrever este texto são os "Propaganda" - a canção... que ainda gosto de ouvir repetidamente, nada mais diz que o poema, e o poema também será algo ambíguo no seu propósito.

O poema de Edgar Allan Poe surge no contexto da filosofia idealista alemã e o tema da "realidade dos sonhos", ou "da realidade ser um sonho", foi algo que teve a sua repiscagem filosófica nessa época, mas que remete aos primevos pensadores gregos ou à tradição asceta indiana. 
Falar-se em "sonho dentro do sonho", em vez de "sonho", seria uma eventual novidade no poema de Poe... e no filme de Nolan vai chegar-se ao ponto de encadear mais uns níveis de "sonhos dentro de sonhos". 
Quem já teve a experiência de se beliscar num sonho, para acordar, e ao acordar continuar afinal a sonhar? Já me aconteceu, e isso não tem especial importância, mostra apenas como a nossa noção de realidade se adapta apenas ao presente, à percepção e classificação de memórias no presente.

Porém, há um ponto importantíssimo, e que não quero deixar de mencionar, sob pena de me esquecer de fazê-lo noutra ocasião... Todo o contexto pode ser modificado, e sendo colocados perante uma poderosa ilusão, há algo que não muda - as nossas convicções mais profundas. Quando bem cimentadas no "ser" têm a força de recusar e eclipsar todo um cenário inconsistente, remetendo-o a uma memória de um sonho. Existimos num contexto porque aceitamos a sua lógica, o resto é uma luta entre a lógica que temos e uma "lógica externa" que se quer impor, condicionando tudo o que nos rodeia. Se a nossa lógica tiver uma determinação e fundamentação irrevogável, tudo o resto colapsa, como um castelo de cartas... (aqui aparecem aqueles avisos "... não tente isto em casa!"). 
Porque, quando foi aberta a "Caixa de Pandora", o gigantesco caos ficou sempre a um pequeno passo de se impor, e o passado e o futuro mostrarão que só a resolução e determinação permitiram o delinear da única ordem possível, em que existissem seres não triviais. A única coisa que obsta a que um caos faça sentido é uma mente que o recuse consistentemente... Afinal, mentes que aceitassem ilusões e fabricações convidariam à entrada de cenários e realidades alternativas, que apenas teriam rumado a um caos perdido numa possibilidade inconsistente. Se Gaia exigiu a sua manifestação, digamos que Úrano viu-se obrigado a enquadrar essa manifestação na única malha (ou Maia) retorcida que aceitaria uma lógica universal consistente. Sendo isto alegórico, é também literal. Num romance queirosiano, isto corresponderia a uma família em que o avô educou a neta de forma a que um seu bisneto fosse um referencial de estabilidade no meio da disfuncionalidade familiar... mas com uma adição ao estilo de Poe, o espírito do avô tentaria ocupar o lugar do bisneto, e falharia na tentativa, porque afinal o seu sucesso educativo eliminaria o espaço possível para aberrações - digamos, uma vingança da avó!

No filme "Inception", para além da questão de "sonhos dentro de sonhos", aparece a questão de implantação de "falsas" memórias. Nesse filme abusa-se do significado de "sonho", porque se os personagens sabem que estão dentro de uma realidade fictícia, então não é um sonho. Num sonho vulgar, se a pessoa se apercebe que está a sonhar é porque acordou... Por outro lado, a ideia de sonho partilhado por várias pessoas (através de um "transpod") é algo que remete mais para uma ficção de realidade virtual. Assim, a única coisa que liga o filme aos sonhos é a forma de produzir a realidade virtual, que não é tecnológica, resulta de domínio cerebral do sonho. Alternativamente encontramos o filme "eXistenZ" de Cronenberg, que explorava um enredo similar, mas no contexto de percepção alterada por "vídeo-jogos futuristas":

Bom, é no contexto semi-científico, que liga a fabricação de sonhos ao cérebro, que se visou o implante de falsas "memórias" em ratinhos. Coloco "memória" entre aspas, porque afinal se Tonegawa mostrou alguma coisa, foi uma associação de estímulos. Como se alguém que tivesse um fígado susceptível a sumo de laranja, seria natural que a mesma reacção se verificasse no transplantado... ainda que o novo dono não soubesse dessa susceptibilidade. Assim, o cérebro dos ratinhos sujeitos a um estímulo de neurónios que ligava a um choque eléctrico é natural que tivesse processado a mesma reacção imediata.
Daí até falar-se em "memórias"... vai aquele passo que dá muito jeito para financiamento de projectos e investigação, muito jeito para o prestígio do cientista, mas que tem menos a ver com ciência. Aliás, "reacções imediatas" nada têm a ver com memórias, são simples estímulos directos, mecânicos, tal como o braço recolhe perante uma chapa quente... nem sequer será o mesmo do que uma reacção pavloviana.

Podemos falar dos limites éticos, quer na utilização de animais para experiências aberrantes, quer no propósito de estudar a implantação de memórias em cérebros animais... sabe-se lá com que propósito futuro!
A Caixa de Pandora está aberta e convidam-se os gatos a este tipo de curiosidades. Curiosamente, os próprios cientistas comportam-se aqui como gatinhos facilmente manipuláveis com os estímulos do reconhecimento e prestígio comunitário. Para isso basta uma máquina poderosa, a que se chamou "Propaganda", essa sim uma verdadeira máquina implantadora de associações que visa "brincar" com a nossa memória e raciocínio:
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P-Machinery - Propaganda

Motor - power - force - motion - drive - motor - force - motion - drive 
Motor - force - motion - drive - power - force - motion - drive 
- Propaganda -
On joyless lanes we walk in lines - a calm but steady flow.
Accompanied by loud commands - our strength is running low.
Another hope feeds another dream - another truth - installed by the machine.
A secret wish - the marrying of lies. Today comes true what common sense denies.
Rotating wheels are destiny - in flame the city lies.
Machines call out for followers far out into the night. The calls of the machines drowning in the steam.
Another hope feeds another dream - another truth - installed by the machine.
A secret wish - the marrying of lies. Today comes true what common sense denies.
The calls of the machines drowning in the steam.
On joyless lanes we walk in lines - a calm but steady flow. Our strength is running low.
Another hope - another dream - another truth - installed by the machine 
- installed by the machine.

Quando Orwell lança a data 1984 para a implantação de um mundo distópico, estaria a referir-se a uma vitória do sistema soviético? 
A Apple é lançada em 1984, e Steve Jobs vê-se na obrigação de esclarecer que o propósito da companhia seria contra o mundo distópico centralizador de informação... e, no entanto, a Apple distinguiu-se da Microsoft por pretender centralizar a produção de conteúdos.
No início dos anos 80 assiste-se a uma "explosão musical", que deixou marcas para essa geração... as músicas eram apelativas, e quanto às letras? Que mensagens procuravam passar?
Seria inocente o tema True dos "Spandau Ballet", quando o ballet que se passava na Prisão de Spandau era ter apenas um prisioneiro, Rudolf Hess, incomunicável, o nazi que tentara negociar a paz em 1941... Acresce a polémica que Bernard Sumner dos "New Order", teria afirmado "You all forgot Rudolf Hess", quando acusaram a banda de promover o nazismo... 
Isto serve apenas para referir que, no meio musical não imperava apenas o diletantismo, e que houve uma tentativa de passar mensagens para a geração mais nova.

Que "casamento de mentiras" invocavam aqui os Propaganda, numa altura em que Gorbashov iniciaria a ascenção que o levaria a introduzir a Perestroika e a queda do muro? Que "máquinas" instalariam uma nova esperança, um novo sonho, uma nova verdade... afinal não sucederia à PeresTroika uma Troika que se iria impor na nova ordem europeia, arrumada a questão da queda do Muro de Berlim?
Afinal, a ordem para soltar os "monstros financeiros" deu-se exactamente no início dos anos 80, por Thatcher e Reagan, fazendo florescer os "yuppies" da finança (designação por contraponto aos "hippies"). Esse mundo da finança foi desregulado com o objectivo de criar desequilíbrios económicos profundos, que levaram ao colapso das transacções da URSS. Só que os "monstros financeiros" continuaram soltos depois disso, como bem sabemos... e tomaram conta descaradamente das máquinas dos Estados soberanos.
Se na altura destas músicas dos "Propaganda" antever uma sociedade distópica, em que o poder estaria centralizado em poucos, e em que os cidadãos formariam filas impotentemente, corresponderia ver uma vitória do sistema comunista, o "casamento de mentiras" tinha uma ideia diferente.
A implantação de memórias e vontades seria orquestrada pela propaganda, a vitória do sistema distópico seria feita pela capitalismo e não pelo comunismo... porque num caso os dirigentes ficam invisíveis, enquanto que no outro caso eram facilmente identificáveis.
Tudo foi preparado para a queda do muro em 1989, e os esbirros dos pentagramas contavam com algo que não veio a suceder... porque eles têm a agenda marcada, que cumprem escrupulosamente, mas esquecem que está desactualizada, porque o "observador" que habita as suas mentes dedicadas não pode sair... devido a compromissos com a consistência da realidade, que não conseguiu ultrapassar.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Eva, Evo e Ovo (1)

Começamos com um interessante gráfico com a árvore de evolução filogenética :
Árvore evolucionária ou filogenética - com datações por registo fóssil (L. Eisenberg, 2008, daqui)

Há uma grande diferença entre evolução e a teoria darwinista (de selecção natural) que se desenvolveu.
Para efeitos da evolução animal humana nem precisamos de registos fósseis, ela torna-se praticamente evidente no traço comum do desenvolvimento embrionário, começando pelo ovo, pela mórula, blástula e gástrula, comuns a todos os animais, e que depois mantém algumas semelhanças visíveis mesmo em fases posteriores:
Comparação do desenvolvimento embrionário 
(peixe, salamandra, tartaruga, pinto, coelho, homem)  [daqui]

A evolução está presente desde a junção do ovo no útero materno, na sequência de divisões celulares que formam o embrião. A recuperação de fósseis, e as árvores evolucionárias, ou o mais recente projecto de sequenciação do genoma, apenas confirmam um aparente percurso semelhante entre o homem e restantes espécies animais. A parte genética vai mais longe, colocando ancestralidade numa mesma célula eucariota, ou ligando até todos os organismos vivos a uma bactéria primeva (LUA - last universal ancestor).

"Evo" prefixo de "evolução" remete-nos a uma primordial "Eva"... uma vez ateado o fogo da vida, num primevo organismo, a chama não mais parou a propagação, recordando no ovo a sua forma ancestral.
O Ovo reflecte uma ancestral célula Eva, foco da chama propagada por Evo... isto é, pela evolução.

O texto poderia agora complicar-se em múltiplas direcções.
Primeira... em que célula está o organismo?
Podemos tentar seguir a célula que se irá dividir para formar o cérebro, mas a questão é que o próprio cérebro não será mais que um aglomerado de células individualizadas, por exemplo neurónios. Para além disso, sabemos que muitos neurónios, e restantes células podem desaparecer por completo e isso não afectará a individualidade do organismo superior.
Analise-se o que acabamos de dizer... "organismo superior". Há um paradigma complicado aqui.
Individualmente cada célula não faz a mais pálida ideia do que é esse organismo superior.
O organismo superior define-se pela comunicação e interacção das células individuais, mas cada uma delas "não saberá" como contribui para a estrutura superior.

Já usei aqui uma comparação com a estrutura de um corpo social. Uma sociedade pode ser vista como uma estrutura em que cada indivíduo é uma célula. Os nomes acabam por revelar essa influência... fala-se em corpos sociais, órgãos de gestão, como se fosse uma réplica de funcionamento de um organismo vivo. Porém, se isso poderia fazer algum sentido, não é o habitual, pois a individualidade sobrepõe-se à ideia de corpo. Assim, o funcionamento do corpo social tende a ser uma ramificação de poderes individuais.
Curiosamente, se há uma leitura do conjunto, mais uma vez ela parece escapar aos indivíduos, entretidos nas suas interacções com objectivos particulares...

Passarei a algo mais genérico, e de consequências muito mais profundas:
- Numa estrutura não estão no mesmo nível os nodos e as suas ligações.
Ou mais intuitivamente, uma coisa são os pilares, outra coisa é a ponte que se forma entre eles.
Pode argumentar-se que as ligações não existem sem os nodos, ou que a ponte não tem sustentação sem os pilares... mas é um profundo erro "materialista"!

Os organismos complexos resultam da interacção de muitos biliões de células, e algumas das formas de vida nem se considera que pertencem ao próprio - caso das bactérias na flora intestinal.
Grande parte da análise científica reduz todos os animais a potenciais montes-de-esterco, pois nada mais restaria do que uma massa fertilizante, alimento para nova vida.
Porém, o organismo complexo é muito mais do que a soma da acção das células, resulta das pontes que se estabelecem entre elas... o que está num nível diferente do individualismo celular.

Por outro lado, os indivíduos têm as suas ambições isoladas, mas ao longo dos tempos emerge a tal evolução que negligencia os indivíduos privilegiando a informação genética propagada pela espécie. Tal como as células se ligam para formar corpos, pela morte programada dos próprios corpos pouco parece mais interessar do que a simples informação genética, transportada pelas "sementes". O grande mastodonte, o belo pavão, ou o esperto macaco, não passariam afinais de variações de DNA, ou ainda, guardar-se-iam apenas em grandes números codificados em base 4 (A, C, G, T).

O indivíduo não está em nenhuma célula isolada... apesar de resultar de divisões sucessivas, perdeu-se a ideia de "célula original"... não há nenhuma "célula rainha"! As células têm diferenças, funções diferentes, mas trabalham na lógica do mesmo organismo. No final da formação do embrião, as divisões levam umas para os pés, outras para a cabeça, mas carregam o mesmo material genético.
Por isso, ao contrário da comparação que se pretendeu fazer com os corpos sociais, não se sente nenhuma individualização, para uma célula ser rainha, ou para umas tantas serem mais nobres que outras.
Naturalmente cada uma assume o seu papel dentro do organismo, e se há rebelião celular, trata-se de uma manifestação cancerígena... curiosamente de células que, parecendo ser individualmente imortais, vão replicar-se sem limites invadindo a estrutura original. Acabam por morrer por colapso da estrutura que invadiram na lógica do interesse da célula individual, que é cega relativamente ao organismo conjunto. A sua aparente imortalidade é afinal uma morte precipitada pela ausência de cognição da célula individual para além de si mesma. Quando se dá a vitória dessa lógica individual no organismo, dá-se imediatamente a sua derrota, pela falência da própria estrutura.

Como disse, este tema poderia seguir múltiplas direcções... se escrevesse sem restrições, acho que tão depressa não pararia, tantos seriam os pontos importantes. Para já, invoco apenas mais uma direcção.

Segunda...  que ligações há entre as células?
Conforme vemos os organismos, as células ligam-se fisicamente umas às outras, por proximidade espacial... mas não só! As células de diferentes organismos nem sempre são benvindas, como ocorre em problemas imunitários resultantes dos transplantes. Aliás, as células mais selectas em termos de recusa de "colagens externas" serão as células da pele (os transplantes de pele usam-se até que a outra seja rejeitada).
Porém, esse é apenas um mecanismo de ligação.
Nesta lógica de corpo, as células têm um sucesso individual limitado, o que interessa será o conjunto.
Esta ideia passou para animais que usam estruturas sociais, como o caso das abelhas.
Ao que parece há vários elementos do DNA das abelhas que mostram mais semelhanças com vertebrados (mamíferos, humanos) do que com insectos... talvez reflectindo o aspecto socializante da espécie.
A lógica das obreiras trabalharem para a preservação do DNA da rainha foi uma filosofia aristocrata humana, tipicamente medieval. Do ponto de vista puramente animal é algo que faz sentido... se a ideia é preservar o código genético, e o povo se revê geneticamente no líder, então trata-se de uma forma de eugenia.

Porém, é preciso ser objectivo no que está em questão... o sucesso das espécies acabou por reflectir uma adequação entre a acção-cognição dos indivíduos num certo contexto. Se havia um jogo, quem ditava uma boa parte das regras era a própria Terra, pelas circunstâncias particulares do planeta. Uma outra grande parte seria ditada pela imensidão de pequenos organismos capazes de afectar o planeta a nível global... as bactérias (incluindo as arquéias) e até os vírus.
Estarão estes micro-organismos descoordenados? Afinal, se houve bactérias que passaram a células e se organizaram em corpos enormes, outras houve que mantiveram a velha tradição unicelular. Apesar dos muitos antibióticos, as bactérias são metade da massa de vida terrestre, e 25 vezes superior à massa dos animais... sendo usadas pelos próprios animais na sua flora intestinal.
Não se pode falar em descoordenação, porque até o seu ritmo de reprodução tem alguma auto-regulação... sob pena de invadirem em pouco tempo todo o espaço terrestre, sendo diversificadas na forma de obter energia, usando directamente a luz nalguns casos (halobactérias). Ou seja, se houver uma coordenação menos previsível de bactérias, estas podem alterar as condições de vida no planeta em pouco tempo, até pelo papel que desempenham em ciclos do oxigénio, nitrogénio ou carbono. Aliás, as próprias mitocôndrias, fonte de energia em todas as células animais, podem ser vistas como "bactérias domesticadas" que controlam a própria longevidade celular.
Por isso, não será de negligenciar uma massa de vida que é metade da existente... e que mantém o ciclo da vida nalgum equilíbrio programado, que vai para além do interesse individual do próprio organismo.

No processo evolutivo que levou à constituição de organismos complexos cuja cognição se ajustou a diversas condicionantes, inclusivamente à competição entre si. Portanto a cognição evoluiu não apenas para a adequação aos processos físicos básicos... Nessa primeira fase a sobrevivência não envolveria a ameaça de outros organismos. Os animais serão os primeiros a desenvolver a capacidade de aniquilar os competidores, numa segunda fase, desenvolvendo um sistema cognitivo neuronal. Mesmo assim os animais reduziriam essa competição contra os diferentes, de outra espécie. A terceira fase, mais letal, ocorrerá com os humanos, elevando a fasquia, ao ponto se aniquilarem uns aos outros, dentro da mesma espécie.
Bom, e do ponto de vista cognitivo, o que exigiria isto?
- Nada mais, nada menos, do que se verem a si próprios como inimigos.
A cognição passava para a fasquia seguinte - exigia uma reflexão, um ver no semelhante o próprio inimigo, e ao mesmo tempo exigiria o compreender-se a si próprio.
Portanto há um claro nexo nestas três fases:
(i) Seres vivos que se alimentam de nutrientes - a cognição será mais uma programação genética, visando interagir e entender os processos físicos. Não exigia entenderem outros seres vivos.
(ii) Animais - alimentam-se de seres vivos de outras espécies - a cognição evolui contra outras cognições+acções de outras espécies. Precisam de entender outros seres vivos, matando-os para sobrevivência, mas foi evitada a aniquilação dentro da própria espécie.
(iii) Humanos - a cognição teve que evoluir ainda mais, já que o mais bem sucedido entre os animais passaria a ter inimigos letais agora dentro da sua própria espécie... o humano era inimigo de si próprio, o humano tinha que se conhecer a si próprio, para conhecer os seus semelhantes.

Isto tem o aspecto dramático de ser a própria violência humana contra os semelhantes que vai despoletar a sua inteligência, porque a necessidade de modelar o comportamento de outros humanos implicaria pensar naquilo que o outro iria fazer na sua situação. Obrigaria a olhar-se a si mesmo, para poder prever a acção dos outros que o ameaçavam.

Bom, dir-se-ia que falta uma quarta fase, uma vez completado o olhar em si mesmo... ou seja, o olhar acima de si, olhar o desconhecido - ver para além dos seus olhos, ver um universo para além do que lhe é literalmente apresentado. Isso corresponde a desenvolver nova percepção... porque se há novo teste, ele será claro - o desconhecido. A imprevisibilidade apresenta-se sem se apresentar, e tem que ser detectada nas entrelinhas, e resolvida, antes que comprometa a sobrevivência dos próprios... isto é claro, se resistirem a não se auto-aniquilarem.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Panoramio (1)

O serviço do Google Maps tem associado fotos do Panoramio, onde muitos disponibilizam fotos tiradas dos diversos locais. Individualmente não custa muito, e antes que as coisas desapareçam, ou se estraguem, uma foto pode ser importante para o registo colectivo, que doutra forma está cheio de todos os empecilhos e burocracias típicas do património... por causa das "coisas".

Compilar e interpretar o muito que já há é uma tarefa imensa, que cheguei a pensar fazer. 
Porém, como me deixei disso, ficam aqui algumas das fotos que me despertaram alguma atenção.
Não vou comentar com detalhe, para não demorar muito, nalguns casos as imagens são esclarecedoras do muito património abandonado por Portugal. 
Os créditos vão todos para os fotógrafos que decidiram partilhar o que viram, e haverá link directo em cada foto.

Começo por algumas fotos de pontes. A minha ideia inicial era pegar num mapa antigo do Álvares Seco, e procurar associar cada ponte lá marcada com uma foto do que resta. Pelo menos sabia-se que existiam já no Séc. XVI... mas enfim isso seria uma tarefa gigantesca.
Ninguém se apercebe bem do imenso património de pontes antigas, que não me parece ser assim tão frequente encontrar na Europa central.

Já se sabe... todas as pontes portuguesas com aspecto antigo ou são romanas ou medievais - e parece ser um bocado ao gosto do freguês classificador. 
Creio que o "grande critério erudito" é o seguinte: 
- se a ponte se encontra numa estrada romana, é romana, 
- se está noutra via é medieval.
Tudo o resto não interessa, e esta "erudição" facilita a vida de todo o estudioso...

Bom, acontece que as vias romanas poderiam ser definidas justamente para aproveitar pontes já existentes, e como a arquitectura de algumas tem muito pouco de "romano", é de suspeitar que sejam mais antigas. Também nada invalida que em milhares de anos, a ponte tenha sido feita em qualquer época, com o engenho de alguns construtores locais, umas melhores que outras.

Pelo link da wikipedia parece estar classificada como "romana"
... parece ter-se os romanos em má conta, pode ser bastante anterior,

Ponte medieval(?) (Escorregadia, Vascoveiro, Pinhel)
Portanto não haveria estrada romana por aqui? 
Tem um aspecto simples e sofisticado... podia ser romana.
O rio aparece seco... já passou muito tempo do seu curso por ali?

Parece seguir por uma via romana, e parece ser romana.

O autor colocou medieval, eu achei que até poderia ser... mas depois
seguindo o link da wikipedia diz-se que está numa via romana, e é romana!

Outra Ponte perto de Vimioso (Vimioso, Bragança)
... parece ser medieval (mesmo) e a reconstrução do arco mais recente.

Ponte "gótica" no rio Maças (Argozelo, Vimioso)
... talvez seja dita medieval gótica pela forma bicuda do arco (e pode ser)!

... parece ser ponte medieval, esperemos não estar em risco pela barragem.

... parece ser atribuída como ponte romana pela junta de freguesia
(parece-nos ser muito mais recente)

Ponte romana (Escalhão, Figueira de Castelo Rodrigo)
... parece ser uma ponte romana, nada mais a dizer.

... parece ser construção romana.

Ponte da Cabreira (Cabreira, Almeida, Guarda)
... parece ser dada como ponte romana, mas é de suspeitar ser bem anterior!
(ver ainda o interessante "barroco do sangue")

... aparentemente muito recente, do reinado de D. Maria II (c. 1850).

Ponte romana(?) (Penha Garcia, Castelo Branco)
... talvez seja mesmo romana.

Ponte de "outras eras" (Idanha-a-Velha)
... parece um bom título do autor, 
tratando-se de pedras soltas para passagem pedonal.


Como é óbvio, são poucas, porque há mesmo muitas... comecei pelos distritos do interior, e mesmo assim faltam bastantes, para além das que nem sequer têm fotos no Panoramio. Um problema típico é ainda que a fotografia pode estar colocada num sítio errado, por simples confusão ou descuido de detalhe, o que ainda baralha mais as coisas. 

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Bear the Bill

"Bear the Bill" aparece aqui no sentido "aguenta a conta".
"Bill the Bear" podia significar "cobra ao urso", em que cobra serpenteia por vários significados, poderia ser um urso de nome Bill, ou simplesmente para invocar um som semelhante a Bilderberg.

Raramente dou destaque de importância aos personagens das estorietas actuais. Confundem-se e parecem-se demasiado com pessoas, para serem apenas tratados como personagens. 
Acho que nunca aqui falei dos chamados encontros do Bilderberg Group, nem de outras coisas parecidas. 
Parece que também se chama Bilderberg Conference, mas afinal há também o 

Build-a-bear Workshop, e ao estilo farmville há até uma cidade Bearville:

Depois, as crianças brincam, fazem cidades, controlam populações, habitantes, etc... mas não há que ter problemas de consciência, porque tratam-se apenas de ursos, ainda por cima virtuais. 
Ou será que não? 
Será que as crianças que no jogo controlam aquelas populações mudariam de atitude sabendo que se tratavam de pessoas? O que prevaleceria - a vontade de vencer o jogo, ou o sentido moral? 
Haverá sentido moral, quando as crianças apenas já vêem ursos virtuais, que se comportam como previsto nas regras, e quando foram educadas para ganhar jogos?

Grande parte da nossa atenção é dirigida a outras pessoas, directa ou indirectamente. Distinguimos naturalmente a atenção consoante a importância que essa pessoa tem para nós. O processo de definir a importância é curioso. No trabalho as pessoas são muitas vezes colegas ou clientes/fornecedores, que não são o foco da nossa atenção, a importância é focada em amigos e família. Desde cedo formamos esse conceito de "clube", e consoante a disposição do próprio admitimos, com maior ou menor facilidade, "novos membros" para o nosso clube restrito de pessoas a que damos importância.
As "redes sociais" vieram contaminar a noção de "amigo" de forma curiosa. Por um lado houve quem tomasse a sério a questão da popularidade, como uma medida de ser importante para os outros, por outro lado esquece a reciprocidade... ou seja, que a dispersão de atenção por muitos, equivale praticamente a pouca ou nenhuma atenção em particular.
Há uma espécie de sedução de fama que, em números que passam vários milhares, tem apenas um sentido - pede a atenção de muitos, e em troca oferece apenas uma resposta comum. Essa resposta comum é normalmente a associação de uma pessoa ao seu trabalho. Não é o trabalho da caixa do supermercado que, apesar de lidar com milhares de pessoas, não tem um trabalho a que seja dada relevância.
A fama da pessoa pode ser perfeitamente dissociada da fama do trabalho, sendo vários os casos em que os autores originais tiveram um papel secundário face aos intérpretes que ficaram famosos.
Como é óbvio, a fama não altera significativamente a importância que o próprio dá aos outros... essa continua a residir num número razoavelmente reduzido de pessoas que lhe interessam. Porém, cria um pequeno monstro dentro de si... a imagem de uma massa indistinta de pessoas que lhe dão importância. No caso de artistas, será o conjunto de fãs, em políticos será o conjunto de eleitores, etc...
Como na prática se torna impossível conhecer pessoalmente o grande número de indivíduos, há uma imagem manipulável do que os outros esperam de si, um "boneco". Por isso, sempre que o trabalho não é dissociado do autor, torna-se manipulável por ideias induzidas, que pretendem uma ligação indissociável entre autor e trabalho, transformando-o num actor. O actor pensa "isto não é o que esperam de mim", o fã pensa "isto não é o que esperava dele"... estão criados "bonecos" que são projecções de expectativas, e que tomam vida própria.

Cedo, através da escola e família, as crianças acabam por definir o seu grupo de importância. A escola é mais imprevisível e presente, acabando por merecer mais a sua atenção. Se as acções familiares se reduzirem ao trivial (seja o apoio incondicional, ou o alheamento total), a criança acabará por se focar cada vez mais na componente escolar. Na componente escolar pode assumir maior importância a relação entre os colegas do que a matéria leccionada. Mais uma vez tendem-se a formar clubes de amizades, onde a popularidade pode ser determinante. No grupo de amigos a sua importância é reconhecida no presente, enquanto que a matéria escolar remete para um futuro algo distante, para relações profissionais que mal antevê. A situação só tende a mudar mais quando o futuro profissional se aproxima, quando se definirá como adulto autónomo, ou quando cedo a criança inicia um processo de independência.
Ora, esse processo de independência, a antevisão de adulto, assume um entendimento próprio do mundo, um traçar de caminho, que será mais ou menos flutuante com as imprevisibilidades. Haverá uns que se definem para um percurso específico, outros que se preparam para qualquer percurso. Os primeiros confiam na antevisão, e sentem-se a ruir quando essa antevisão falha, os outros solidificam-se internamente, mas muitas vezes limitam-se a formar uma bóia que flutua sem destino traçado.
A limitação da vida cobra as opções. A incerteza perante a morte levará na velhice a questionar a importância do que considerou antes como importante. Nessa fase final, é normal adoptar a mesma postura da criança. Cercar-se do efémero presente para esquecer a perspectiva incógnita do seu futuro, ou adoptar um percurso específico fazendo fé num determinado fim em que decidiu acreditar. Mais raros são aqueles que se tentam solidificar internamente, procurando formar uma bóia para quaisquer novos mares desconhecidos, e se possível levando no seu raciocínio alguns instrumentos de navegação.

A pergunta sobre o significado da existência é uma pergunta transversal. Não diz respeito a ninguém em particular, e por extensão é uma pergunta que se coloca ao próprio universo. Para a resposta universal, cada um de nós é uma própria simulação de um universo em si. Tal como o próprio universo poderia questionar o seu término, a redução do universo a nada. Essas questões são colocadas em nós, como reflexo de questões que nos transcendem... e porém, temos todos os elementos que permitem chegar às conclusões. Umas respostas mais simples que outras, umas são conclusões individuais transversais, outras serão conclusões que requerem uma colaboração colectiva, indefinida, intemporal... mas é preciso crescer!


Tiny Children (Teardrop Explodes, 1982)

Half the time 
As I sit in disarray
I am thinking of a dream I never had
Then I awake and for a while
I call your name in Callings house
But tiny children have a way of falling down

Oh I could make a meal
Of that wonderful dispair I feel
But waking up I turn and face the wall

The car arrives
And takes me back again
Drifting through imaginary blaze
And fighting men, a border raft
A sailing ship has run aground
And confidence is valued in these days

But each character 
Is plundering my home
And taking everything that is my own

Oh no, I'm not sure about
Those things that I cared about
Oh no, I'm not sure
Not anymore