sábado, 16 de março de 2013

Hélgia (1)

- Hélgia... seis letras que, ao que parece, nunca foram escritas.
- Sim, e quantas letras juntas ganharam o estatuto de serem tidas como palavras?
- Elegia, elegia é uma palavra bem conhecida.
- Eu sei, mas não é elegia, é da noção hélgia que falamos.
- Olha, uma tem mais de 2 milhões de ocorrências, a outra acho que nunca foi escrita na internet.
- Esperem. Quantos estamos aqui a falar?
- Isso importa?... acho que não!
- O pessoal normalmente não se afasta muito do que foi feito antes... seguem o trilho na floresta de enganos.
- Quem disse isso? Se cada um se pusesse a inventar palavras, não nos entenderíamos.
- Pois, e quem inventou estas que usamos?
- Já perdi a conta, quantos somos nesta conversa?
- Estás a falar da invenção do significado, do som, ou da sua escrita?
- Estou a falar mais sobre o significado... acho que é isso que distingue um conjunto de caracteres, ou de fonemas, de uma palavra.
- Até porque apesar das múltiplas línguas, aparecem as mesmas palavras, ou semelhantes.
- É pá... lavra, não vês que é cultura, é lavra a palavra.
- Entramos na joga do ioga...
- Quantos somos aqui, afinal?
- Que é que isso interessa? Olha, pergunta ao autor!
- Podemos falar com o autor? Um personagem pode falar com o autor?
- Acho que não é conveniente... imagina o que os personagens de uma tragédia lhe queriam dizer, ou fazer!
- Crucificá-lo? Bom, mas não apenas ao autor, também aos leitores, que os obrigam vezes sem conta a reviver esses dramas.
- Que estupidez! Os personagens não sentem!
- Não? De quem são os risos, as lágrimas, as emoções, que os personagens invocam no leitor? Não é algo que o leitor (ou espectador) esteja a sentir no seu corpo. O cérebro do leitor serve de "máquina" para reviver as aventuras e desventuras do personagem.
- Percebi... e quando o leitor "encarna" no personagem as emoções não são apenas suas, são emprestadas por esse personagem, pelos seus sentimentos no enquadramento.
- Sim, no processo de leitura o leitor reserva uma parte do seu cérebro para se colocar na posição do personagem. Desliga-se mais ou menos dele... pode colocar-se sempre na posição superior, em que tem o conhecimento dos diversos fados. Porém, quando quer interpretar o sentimento do personagem, o leitor assume as suas dores, torna-se numa sua réplica... ainda que não exactamente igual, pois o autor teria um propósito, um contexto, e diversos leitores, ou o mesmo leitor numa releitura, terão outro.
- Continuo a achar que é uma estupidez... vejam esta história: "O Joãozinho era um rapaz infeliz, órfão, sem amigos, ia a passear pela floresta, caiu e partiu uma perna. Ficou a sofrer sem que ninguém se preocupasse com ele." Pronto, já está. Vão-me dizer que este Joãozinho existe?
- Passou a existir... a partir do momento em que contaste essa história.
- Ah! Eu sou o culpado da desgraça do Joãozinho... essa 'tá boa!
- Pelo que percebi, serás tu e quem a ler a seguir. Mas o Joãozinho não será o mesmo... cada leitor terá uma imagem própria do rapaz, da floresta, etc.
- Bom, mas acho que também tem a ver com a verosimilidade. Há histórias que nos aproximam mais da realidade do que outras. Se o Joãozinho tivesse sido atacado por um dragão perceberíamos que era uma situação de fantasia.
- Não só. Essas situações fantásticas, hoje vistas como fantasia já foram tidas como medos reais.
- Claro. A mensagem pode ter um propósito de incutir medos. Ao contrário, raramente vemos textos para lidar com os múltiplos medos que nos são incutidos.
- Estamos a afastar-nos da discussão...
- Quem disse isso?
- Quem disse "quem disse isso?"?
- Eh! Eh!
- Sei lá, já se esqueceram que não temos nomes, nem sabemos quantos personagens somos?
- Porquê?
- Já vos disse, perguntem ao autor!
- Mas os autores não se devem misturar com os personagens...
- Acho que quem disse esta última foi o autor... eh eh!
- Então, e as outras não foi?
- Olha, olha, temos o autor entre nós! Apareceu como personagem.
- Isso não faz sentido, se todas as frases foram escritas por ele, sempre esteve como personagem.
- Não perceberam que as frases, as palavras, existem, independentemente de serem veículadas por um ou outro corpo? A partir do momento em que apareceu a linguagem, todas as suas combinações, todos os textos, todos os livros, ficaram potencialmente possíveis. Ou seja, já estão feitos.
- Estás apenas a referir-te à linguagem?
- Não, não estou.
- Estou-te a topar... bem observado!
- Olha, eu sinto que me estão a passar coisas ao lado.
- Bem vindo ao clube!
- Se é o que eu estou a pensar... grande malha da nossa Maia!
- Tenho que ler melhor os outros textos, mas acho que estou a ver o "filme"... e que filme!
- Não percebi nada!
- Olha, perde aí um tempito a explicar-lhe... encontramo-nos de novo?
- Claro, depois voltamos à conversa.

 Laurie Anderson - The Beginning of Memory

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